13 de janeiro de 2005

ainda a governabilidade



Como se sabe, os sistemas eleitorais são mecanismos de conversão de votos em mandatos, sendo o português, um sistema proporcional regulado pelo método de Hondt. Sem entrar em pormenores estatísticos, o método de Hondt é apenas uma fórmula de atribuição dos mandatos pela média mais alta (ver STAPE). Ora, a opção por este modelo saído da Constituição de 1976 visava justamente inibir a formação de maiorias absolutas e por dois motivos em especial: um que tem que ver com as representações colectivas traumaticamente herdadas por razões histórico-culturais; e o segundo resulta da preocupação em dar expressão representativa no parlamento a todas as classes e facções sociais, maiorias e minorias de toda a ordem.

Claro que modelos como o nosso, poderão favorecer a formação de coligações, ao contrário dos sistemas maioritários em que tal não é necessário. É o que tem sucedido em diversos governos (as AD’s de 1979 e 2002; o Bloco Central em 1983), apesar de em 1987 e 1991, o PSD ter conseguido individualmente deter a maioria absoluta dos deputados à Assembleia da República. Em todo o caso, convém não esquecer que o segundo governo de Guterres (1999) não consegue conviver com uma maioria relativa no parlamento. Aliás, o primeiro governo de Cavaco Silva (1985) acabaria por cair dois anos mais tarde

Mas, não obstante a suposta necessidade de maiorias absolutas para assegurar condições de governabilidade (assim é entendido por alguns dos insignes comentadores de política e políticos), vimos atrás como em sistemas proporcionais, as maiorias absolutas também podem ser alcançadas.

Afinal, mesmo eleitoralmente, é possível que um partido isoladamente consiga a maioria absoluta num sistema eleitoral proporcional. Em 1999, Guterres ficou a 1 deputado desse objectivo. Como se pode ver, o sistema eleitoral português é já de si extraordinariamente flexível, levando inclusive diversos politólogos a classificar as variantes que tem assumido desde 1974.

De modo inverso, mesmo garantidas no parlamento as pretensas condições de governabilidade, os governos de Durão Barroso e Santana Lopes não as reflectiram por razões de variada índole, que vão da conjuntura económica, passando pela coordenação governativa, até ao carácter e competência dos membros do governo.

Apesar de tudo, pode-se afirmar com alguma consistência empírica que as maiorias absolutas no parlamento proporcionam normalmente melhores condições de governabilidade.

No entanto, actualmente como está, o sistema eleitoral favorece a formação de coligações pré ou pós eleitorais, o que na minha opinião é um excelente dispositivo de controlo mútuo e procura de consenso na definição do que é o interesse nacional. Neste caso, grande parte da responsabilidade é transferida para os partidos e para os políticos, para a capacidade que demonstram em passar a imagem daquilo que é mais importante: se o país, se os interesses segmentados de dois ou três grupos de pressão.

Por outro lado, como se sabe, nos sistemas maioritários vigora uma regra: first past the post, querendo com isto dizer que o partido que tem a maioria dos votos, leva-os todos. É o que acontece em sistemas presidencialistas como o americano ou parlamentares como o britânico. Por exemplo, um eleitor que tivesse votado no partido Democrata no estado de Alabama, veria o seu voto completamente desperdiçado porque os representantes a sair desse estado para o Congresso foram todos eleitos pelo Partido Republicano. Não há lugar para o segundo lugar. Pode até acontecer que o partido menos votado consiga uma maioria no órgão legislativo, como aconteceu na primeira eleição de Bush ou como sucedeu na década de 60 (se me não atrai a memória) com o Partido Liberal no Reino Unido: em função do número de eleitos por cada círculo eleitoral (círculos de apuramento dos representantes, em Portugal, correspondem à área dos distritos).

Em Portugal, temos um modelo semi-presidencial (como em França, por exemplo) e, apesar da tendência à bipolarização, temos 5 partidos com assento parlamentar, cobrindo todo o espectro político-ideológico da maioria dos portugueses. Salvo raras excepções essencialmente radicais ou exógenas ao sistema democrático.

Caso a proposta da transformação dos círculos plurinominais (vários eleitos por círculo) em uninominais (1 eleito por círculo) vingasse, verificar-se-ia uma tendência concreta à formação de maiorias no parlamento, e quanto muito, dos actuais 5 partidos com assento parlamentar, caso PCP, CDS-PP ou BE conseguissem eleger deputados, seria em número muito inferior ao actual (repare-se como, dos 230 deputados, 29 são originários desses partidos).

Porém, nas actuais condições, não só é possível a formação de maiorias absolutas – quer em eleição, quer em coligações – como se mantém o princípio da representação proporcional. De resto, com um sistema proporcional, parecem-me ser asseguradas condições de governabilidade em países como França, Finlândia, Áustria ou Irlanda.


PS: Mas este tipo de esclarecimentos, são os partidos políticos quem os deve fazer, assim como a clarificação de programas eleitorais, que tanto PS como PSD parecem continuar relutantes em mostrar aos portugueses. Preferem ocupar o tempo de antena com discussões que são sem dúvida importantes, mas uma vez mais, referem-se a divisões de poder e não de resolução de problemas concretos…

3 comentários:

ARV disse...

Caro amigo

Concordo consigo. As maiorias absolutas são tão absolutas para o bem como para o mal, pelo que, nestes últimos casos, a função de vigilância da oposição sai diminuida. Claro que partimos, eu e tu, do mesmo principio de construção que deverá presidir e nortear a relação entre governo e oposição.
Todavia, é também na regulação dessa relação que existe a figura presidencial no nosso sistema, cujas prerrogativas «capitais» foram últimamente invocadas, mas como disse, só em casos extremos deverão ser invocadas, dado o impacto que têm na sociedade civil, no universo político-partidário e nos modelos de desenvolvimento seguidos.

Quanto à questão que colocas, é claro que se trata de uma questão de fundo normalmente escamoteada pelos grandes partidos, por motivos óbvios. Por isso, enferma naturalmente de um mal conhecido: a preponderância de uns sobre os outros na satisfação e assunção daquilo que são os interesses sectários de um grupo. E esta presunção vai desembocar naquilo que comento ao de leve no texto: a definição do que é o interesse nacional e a inexistência do conceito kantiano de imperativo categórico na cabeça dos políticos, sobretudo nos dias de hoje. Nem nos políticos, nem nos cidadãos que exigem aos primeiros, não exigindo de si próprios. Falta portanto, na minha opinião, que as pessoas «ajam segundo a máxima das suas acções de converta numa lei universal», ou seja, ajam de acordo com um dever moral que gostariam de ver aplicado em todos. É com base nesse pressuposto que definimos as normas, contruímos sistemas eleitorais, contributivos, etc. Nesse e no da boa fé...

ARV disse...

peço desculpa pela escrita atabalhoada: «ajam de acordo a que a máxima das suas acções se converta numa lei universal». De cor, é mais ou menos isto o imperativo categórico em Kant.

Que me perdoem os entendidos se cometo imprecisões.

Em suma, se contruímos modelos e estruturas de decisão, cidadania, etc., que de modo implícito nascem com base em alguns desses pressupostos e por outro lado, não estamos preparados para os aceitar (nós os humanos), como é que será possível não haver rupturas, choques, afastamentos?

Mas este é apenas um pequeno aspecto. Estou convencido que a questão da governabilidade passa em enormissima medida pela sociedade civil, pela afirmação da sociedade civil como interveniente, interessada e participadora na coisa pública.

Aos políticos, isso pouco interessa porque o inverso da mobilização é a perda de protagonismo...

ARV disse...

Caro Bandido

Mais uma vez, agradeço a sua intervenção, assim como as demais.
Claro que os políticos são, no limite, sociedade civil. No entanto, quando nos referimos a sociedade civil estamos naturalmente a aludir aos cidadãos despidos de responsabilidades formais de decisão, enquadradas pelas competências de um cargo público de decisão política.

Mas sim, também é claro que toda e qualquer mudança numa sociedade deve partir de vários quadrantes, apesar de nalguns casos, serem despoletadas por grupos ou mecanismos muito específicos.

Quanto aos circulos uninominais, os seus defensores argumentam normalmente com a ideia de governabilidade e com o facto de supostamente estarem mais próximos das populações, aumentando a responsabilidade. Imagine que seria esse o modelo em Évora. O Sr. teria um representante pela cidade de Évora (aproximadamente), o que corresponderia no parlamento a 1 dos 3 que actualmente são eleitos pelo circulo plurinominal de Évora.
Mas esses são apenas alguns dos argumentos de quem defende os circulos uninominais.

Ainda os circulos uninominais: não há provas empíricas de que uns sejam melhores do que outros. O que acontece é que, consoante os princípios que estruturam a representação política de um país, assim devem ser estruturada a forma de representação, ou seja, se nos preocupamos com o que pode degenerar em «tirania da maioria» ou com a representação de minorias, então, o sistema de representação mais adequado - parece-me - serão os circulos plurinominais e a representação proporcional.

Repare bem, Sr. Bandido, como o Reino Unido funciona num sistema maioritário cujo «recrutamento» para a Câmara dos Comuns assenta na eleição por círculos uninominais e não me parece que funcione propriamente mal...