31 de outubro de 2006

Uma Ideia de Europa

Amesterdam, 20.6.2001


No seu livro, A Ideia de Europa (Gradiva), George Steiner advoga que são cinco, os axiomas distintivos da identidade europeia que, mau grado, me esforçarei por sintetizar sem obliterar o sentido do texto.

Steiner começa por identificar o primeiro elemento, o café, local de sociabilidades geradoras e transmissoras de conhecimento, valores e sensibilidades, tugúrio acostumado à convivência de intelectuais, políticos e artistas. Estes locais, portadores de singularidades e de identidades próprias, reflectem as especificidades culturais, as segmentações sociais e as dinâmicas temporais vividas em cada época. Mais do que outros espaços, os cafés são ponto de encontro para habituées e forasteiros.

Seguidamente dá-nos conta de “uma paisagem a escala humana”, humanizada à medida de travessias pedestres de curta distância, em contraposição com a magnitude topográfica da América, África, Ásia e Oceânia: na Europa tudo é sufocantemente perto e pequeno.

Em terceiro lugar, a toponímia de ruas e praças, bastante associada à memória colectiva, ao traçado histórico. À memória dos grandes estadistas, escritores, poetas, músicos. Ao contrário das ruas numeradas e de esquadria rectilínea do novo mundo.

Como quarto elemento, anuncia-nos a herança da Antiguidade Clássica ao nível da «revolução» gnóstica e da moral judaico-cristã, presente no complexo axiológico que, em tese, unifica o povo europeu.

Finalmente, a consciência de uma finitude civilizacional alicerçada nada menos que numa particular atracção pela auto-destruição, observável nas quezílias intestinas e sobretudo nas hediondas alarvidades cometidas em Auschwitz ou Sarajevo. Em contrapartida, os quase dois milhões de mortos chacinados no Ruanda serão certamente uma fábula, bem como a guerra civil americana, as guerras pós-coloniais em África e na Ásia, o pré-extermínio de aborígenes pelos australianos e outras experiências «para-eugénicas» entre inúmeras tribos ditas primitivas [às escalas respectivas].

Ora, se é aceitável que os cafés existentes fora da Europa com estas características representam inequivocamente o modelo europeu, tendo sido exportados pelos colonialismos, não é menos verdade, parafraseando George Steiner, que o modelo está a ser engolido e diluído numa cultura globalizada, acossado por uma uniformização mercantilista e consumista.

Mas este fenómeno da globalização é, na realidade, tão «perigoso» para a pretensa identidade europeia como o foram os fenómenos globalizadores desenvolvidos no mundo conhecido de então pelas civilizações helénica, romana, cristã, etc., engendrando a aculturação imposta de valores e referências dos povos dominadores pelos dominados. A cultura exprime, antes de mais, uma relação de poder. E é com relação a esta que a Europa se construiu, resultando geo-política e culturalmente de lutas, conquistas, invasões, ocupações e imposições normativas, políticas, culturais, religiosas e económicas.

Por outro lado, a preservação da memória não é de modo nenhum um traço distintivo exclusivo de uma cultura, neste caso, da europeia, como defende George Steiner. Esta hipótese é reveladora, antes de mais, de um desconhecimento profundo do que significam as dinastias ming, a civilização egípcia, inca, azteca, maia e cuja interiorização não tem que se exprimir necessariamente na toponímia local.

Se é certo que a oralidade e a arqueologia da escrita, dos artefactos e do património invocam a riqueza histórica dos povos europeus, não é menos correcto afirmar que a preservação da memória é inerente aos mojave, aos baruya, aos m’buti, esquimós, yanomami e povos berberes, através de formas de registo diferentes mas animadas pelo mesmo desiderato reprodutivo associado à sobrevivência de um povo. No mesmo sentido, a proliferação de museus e memoriais pelo mundo inteiro atesta justamente essa preocupação, independentemente da profundidade histórica.

A este nível, a distinção encontra-se mais na existência de registos, na diferente densidade temporal e na proliferação demográfica (com interacções variáveis desde a savana africana às estepes asiáticas), conferindo à história da Europa, uma vez mais, a arrogante intransigência histórica dos vencedores.

Se aqueles cinco postulados parecem ser suficientes, podem ser na realidade muito exíguos e uniformizadores. Reivindicar uma unidade, traços distintivos para um mosaico cultural tão rico como o europeu (as línguas, os costumes, a panóplia de povos e até a dimensão religiosa, simultaneamente localizável num mínimo denominador comum – os monoteísmos de 3 religiões subsidiárias de Abraão – e no paganismo milenar que convive e matiza distintamente a experiência metafísica dos diversos povos ao longo de milénios), reduzindo-a a meras características assimetricamente observáveis no espaço europeu, coloca o autor perante o delicado equilíbrio da generalização da sua própria experiência.

Experiência essa, fortemente imbuída de um elitismo cartesiano, ao estatuir a cultura como o produto da acção de segmentos sociais que funcionariam como gate keepers privilegiados do conhecimento (criação e transmissão), negando intuição e experiência como fontes disseminadas de saber; apesar da tentadora hermenêutica simplificadora do real, espraiada em cinco ambiciosos axiomas em ousada dupla ruptura epistemológica…

É precisamente esta arrogância eivada de uma despicienda sensação de superioridade cultural que está na base da «exportação» de modelos à força, sejam eles políticos, económicos ou culturais. Os que Steiner acusa nessa globalização de matriz anglo-saxónica com epicentro na América do Norte.

Não obstante a atraente roupagem e a romântica genealogia proposta pelo autor para a sua ideia de Europa, relevarão porventura as feridas não saradas pela perda de hegemonia da Europa no decorrer do séc. XX e sugeridas as formas para contrariar o poderio norte americano (através do conhecimento e de um humanismo «secular»), resvalando o texto, em última análise, para as inevitáveis relações de poder entre dois blocos com mais elementos em comum do que imaginam. Irreversivelmente. Como se de repente as abençoadas indulgências tivessem finalmente alcançado o paraíso…

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