16 de outubro de 2006

Entre a Geo-estratégia e a Beatice


A atribuição do Nobel da Paz a um homem fundamentalmente ligado a assuntos desenvolvimentistas tem gerado alguns engulhos e indigestões entre velados pretendentes ao dito reconhecimento e aos que, não tendo essa pretensão, concebem tal distinção como uma ratificação a tiranos e terroristas por, uma vez na vida e sabe-se lá em que circunstâncias e com que consequências para a humanidade, evitarem a conflagração da violência e da guerra.

Não nos referimos obviamente aos que estenderam o seu apoio a homens como Annan, Ximenes Belo, Aung San Suu Kyi ou Mandela. Que, em rigor, podiam ter sido os mesmo que apoiaram Colin Powell ou Yasser Arafat.

A guerra até pode ser vista, à semelhança do postulado de Clausewitz, como uma «continuação da política por outros meios» e a sua inevitabilidade residir no mais puro pragmatismo da defesa da identidade e interesses genuínos de um povo. Nesse patamar estariam eventualmente homens como Michael Colins ou Yasser Arafat. O último foi inclusivamente galardoado com o Prémio Nobel da Paz. Contudo, esta decisão não só foi polémica como reveladora de uma estratégia latente do comité sueco. A de «fazer a paz por outros meios».

Nessa ordem de ideias, nomes como Pol Pot, Estaline ou Saddam Hussein poderiam também ter sido agraciados com o prémio. Podia ser que a coisa mudasse...

Ora, não sendo nem tirano convicto nem uma Madre Teresa de Calcutá, o bengali Muhammad Yunus cai fora desta aritmética bidimensional que se manifesta entre a geo-estratégia e a beatice.

Basicamente, o argumento do Comité de Atribuição do Prémio Nobel converge com alguns dos princípios básicos de Yunus, para quem «o fim da pobreza conduz ao fim dos conflitos».

John Rawls, na sua «teoria ideal» da Lei dos Povos, discorre sobre um conjunto de características associadas à democracia que conduzem à salutar convivência entre os povos, defendendo com recurso à empiria, que as sociedades democráticas são, historicamente, as que menos conflitos empreendem (a não ser ao abrigo do conhecido conceito de «guerra preventiva» para o qual concorre a legitimidade da «guerra justa»), considerando que também são as que conseguem melhores performances e estabilidade económicas.

A erradicação da pobreza assume aqui um papel importante na definição das causas da maior parte dos conflitos, recenseadas historicamente. E de facto está sempre implícita uma dimensão que resulta da digladiação por recursos que são escassos na luta pela «sobrevivência». Podemos identificá-lo na instintiva sobrevivência dos yanomami, para quem os raides a aldeias vizinhas e o consequente rapto de mulheres e raparigas significam a sobrevivência de um grupo. Mas também o podemos identificar nas múltiplas «expansões» e conquistas de territórios «à lei da bala», aviltando-se o invasor ou conquistador com os mais variados pretextos. E na verdade, não me recordo de nenhum conflito aberto entre dois países democráticos e que vivam desafogados financeiramente.

A plena satisfação de necessidades primárias desembaraça assim os povos para outro género de realização, menos conflituosa porque mais racional e mais liberta para abraçar com menos reservas os valores e princípios da liberdade, autonomia e respeito pelos povos. Valores, de resto, provenientes das teorias liberais emergentes do iluminismo.

Nestes termos, contribuir para a redução da pobreza mundial com recurso ao microcrédito não será seguramente a solução para a paz no mundo mas é certamente mais uma ferramenta para a dissuasão de beligerantes.

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