23 de outubro de 2003

os deuses também já foram homens



SLAVA, O PALHAÇO

Ontem, Sábado (11 de Outubro), tivemos a oportunidade de ter uma experiência bela, diria mesmo, quase pura do ponto de vista das emoções básicas. O globo deteve a sua marcha a partir do momento em que a substância dos nossos corpos se metamorfoseou numa espécie de matéria sensível ao dar entrada no Grande Auditório do CCB. Confesso que me mostrei um pouco céptico antes de entrar, apesar das referências. «Ver palhaços na palhaçada» não é bem o meu forte pois, para além do humor duvidoso, cheira demasiado ao campo circense, pelo qual não nutro especial afeição... Porém, duas horas depois, não podíamos ser, de forma alguma, as mesmas crianças.

Ora bem, Slava não é certamente um palhaço qualquer, de acordo. Nem o seu espectáculo é um simples número de magia à Luís de Matos. Slava's Snow Show é muito mais que um espectáculo com palhaços. É a arte da mais fina representação num encadeamento dramaturgico levado ao extremo no que respeita a emoções.
O espectáculo é tal forma brilhante que toda essa teatralidade é levada quase à perfeição, conduz-nos pela beleza das formas, despista-nos pelo deslumbramento causado pelas milhentas luzes, dos cenários inteligentemente concebidos, as explosões pirotécnicas, a música, meticulosamente seleccionada, que nos envolve e absorve.

Portanto, nem Slava é apenas um palhaço nem o seu espectáculo apenas um show, certo? Na verdade, esta questão ganha contornos de problematização conceptual, obrigando-me a ser tão preciso quanto me seja possível: tratou-se, ontem, de «Slava e o seu show».
É impressionante como a intensidade dramática (a que não faltam imensos momentos de comédia, humor e poesia) agiganta-se até atingir um climax muito particular com surpreendentes explosões de música, cor, alegria, sofrimento, drama, hilariedade. E a magia, muita magia, que se espalhou por toda aquela plateia...

Há 3 ou 4 cenas particularmente bem conseguidas: primeiro, quando serenamente, um dos palhaços evolui no palco manobrando uma linda bola cheia de ar, com uma varinha, fazendo-a permanecer adoravelmente suspensa, como se fosse um astro. Neste caso, a cena é magnífica por duas razões: a apaixonante expressão corporal do «palhaço» (que aparece na foto em cima) e os jogos de luz, encimados pela riqueza musical envolvente, dramaticamente envolvente.

Outra cena inolvidável porque crucial, ocorreu no intervalo, durante o intervalo: 4 «pinguins» espalharam deliciosamente o caos nas primeiras filas da plateia. Trocaram pertences às pessoas, regaram-nas com água, «raptando» inclusive uma rapariga da assistência que acabou por fazer parte do espectáculo. E aqui começa a manifestar-se toda a inteligência e sensibilidade do demiurgo ao romper com os «tempos mortos». Prova provada que a razão só faz sentido existencial em harmonia com a sensibilidade e vive-versa.

Há uma outra cena impressionante, na qual se continua a preparar o que está por vir. Slava enrola-se pateticamente em teias de aranha, durante a «faxina». As teias caem sobre Slava e alastram fulminantes à plateia, que se vê obrigada a passar metros e metros de «teias» para trás, de braços no ar em intenso frenesi... O efeito é belo: a imensa plateia do Grande Auditório eleva ao alto um emaranhado de braços sem fim, ansiosos por fazer passar o enredado volume de teias, que nos cobre de fantasia.

Finalmente, Slava, o palhaço, debaixo de uma chuva de neve que se transforma numa violenta tempestade. A encenação é fantástica, Slava é fabuloso. Contra ventos fortíssimos que silvam sem se deter, Slava, o palhaço, tenta a custo manter-se erecto, lutando contra a tempestade. Estes ventos que varrem a neve do palco e a projectam para as pessoas, que com algum custo mantêm os olhos abertos, certificam que o público está com Slava no seu tortuoso caminho, em plena tempestade. Os elementos estão presentes, os nossos sentidos também...

O público, a assistência, vai acompanhando sensorial e activamente o espectáculo, que entretanto vê o seu fim chegar. Entretanto, as pessoas saltam como molas das cadeiras para homenagear os artistas num comportamento absolutamente reagente. As palmas ecoam ruidosamente no grande espaço. Palmas, assobios e generalizada emoção.

O espectáculo terminou. Terminou? Antes que alguém se lembrasse de confirmar as palmas das mãos vergadas pelo exercício inesperado, já enormes e «pesadas» bolas tocam, vindas do céu, o sonho em nós. Bolas com 3 metros de diâmetro que nos transportam por múltiplas dimensões das nossas efémeras existências e nos transformam.
A plateia está ao rubro, todos querem ansiosamente tocar nas bolas, projectá-las para a frente, para os lados, para trás. Eu e ela, não trocamos olhares e sabemos. Sabemo-nos e ansiosamente fixamos as bolas, na esperança de alguma nos tocar, suavemente, como um beijo de ternura. A ansiedade dá lugar à angústia, dificilmente alguma bola encontra o nosso caminho, dada a inclinação da plateia. Uma passa bem perto mas não se detém na sua marcha…

Lá à frente, tudo na mesma: todos são iguais, todos são crianças.

Slava senta-se no palco e observa a sua peça, observa-nos enquanto o ignoramos. As bolas...
Todas são iguais, todas somos crianças e, Slava sabe disso. Por isso permanece sentado, observando apenas.
Eis que uma se aproxima, ela é criança, eu sou criança, Slava sabe disso e nesse momento, todos somos felizes.

As crianças exultam, pais, filhos, avós e… nós. Slava sabe-o e por isso é feliz também, acompanhando-nos com o seu olhar experiente. De missão cumprida.

Eu e ela, movidos pelo mesmo destino e pela mesma vontade incerta, acercamo-nos finalmente do palco. As bolas já são somente meros adereços. Nesta altura, dispensáveis. Os corações apertam e sem o dizerem, sabem porquê. Slava também.

Ele está rodeado, dá autógrafos, dispensa sorrisos às crianças e seus filhos e netos. E nós.
Nós somos também, e Slava sabe que o somos, conhece os nossos desejos. Slava já o sabia e por isso escolheu aquele local para descansar, no mesmo local privilegiado de onde tudo se pode ver, de onde se pode assistir àquele maravilhoso e comovente espectáculo.
Naquela fracção de momento, ela e eu fomos os personagens principais, caminhando discretamente e, naquele momento, voámos. Naquele preciso momento em que Slava nos olhou pela enésima vez, agora no fundo da íris e tocou com a dele, as nossas mãos.
Aí terminou finalmente o que estava. As palmas, guardamo-las nos corações.


Sem comentários: