6 de outubro de 2004

em de-talhe

PARTIDO COMUNISTA PORTUGUÊS

A democracia representativa portuguesa, ao contrário do que por vezes se possa pensar, assenta num sistema pluripartidário, no qual são reconhecidos como partidos ou movimentos políticos (a concorrer em eleições), mais de duas dezenas de agrupamentos, apesar de apenas 5 com assento parlamentar. Na prática, já o sabemos, o nosso sistema tende ao bipartidarismo em torno de dois grandes partidos que alternam entre si o governo do país.
Mas a actividade parlamentar não se resume ao governo nem à aprovação de leis. Cada grupo parlamentar desenvolve diariamente trabalho de apoio para as diversas comissões especializadas, de inquérito, assim como para novos projectos de lei, etc., etc.
Ora, a ideia de um sistema representativo pluripartidário implica, na minha opinião, duas características fundamentais. Em primeiro lugar, dá voz às diversas sensibilidades assim como às especificidades e clivagens de grupos sociais, territoriais, profissionais, etc. No mesmo sentido, permite de algum modo suster um ou outro leve ressaibo que soe ao que Tocqueville denominou «tirania da maioria». Em segundo lugar, a presença de diversos partidos fomenta o debate ideológico, alarga o objecto da discussão, matiza a agenda política.

Com a queda do muro de Berlim, a dissolução da URSS, a consolidação crescente da economia de mercado, o alargamento dos princípios democráticos inclusive a países provenientes da cortina de ferro, a entrada de alguns deles na OTAN e na UE, entre outros factores, torna-se claro que o mundo mudou. No caso português, as transformações sucederam-se como o dia sucede à noite, desde a entrada na União Europeia à ratificação da Constituição Europeia a ter lugar muito brevemente. Com aquelas mudanças no plano internacional é instaurada uma nova ordem mundial, na qual se configura uma nova hegemonia cultural, económica, política, bélica. Só que, entretanto, o mundo já havia mudado (e continua em constante mutação) desde o Manifesto do Partido Comunista, em 1843. Ele foram guerras mundiais, ele foram direitos cívicos, sociais e políticos conquistados (consoante os países), foram guerras invisíveis, a crescente complexidade das sociedades com as divisões sociais do trabalho e sequente necessidade de especialização, a assunção da sociedade de informação, etc., etc. Contudo, o projecto comunista não sofreu alterações (não se trata de rever toda uma teleologia, toda uma ideologia da emancipação), não houve lugar à redefinição da clássica luta de classes em torno dos meios de produção no sentido de alcançar uma sociedade mais justa e igual. O mundo continua simplistamente dividido entre oprimidos e opressores, entre burguesia e proletariado. E estamos a falar da mesma sociedade onde os dois partidos do poder focalizam os seus discursos numa imensa classe média (dificil de discernir onde começa e onde acaba); onde a mobilidade social conheceu uma dinâmica inaudita; onde o acesso à educação foi democratizado e massificado; mas também, onde o Estado tem vindo a ser espoleado...

Por outro lado, são conhecidas as circunstâncias com que o PCP se debate, ditadas a partir de fora mas também de dentro: os maus resultados eleitorais sucedem-se (perda de deputados à AR, perda de câmaras municipais, desvio de votos para o BE e para o PS), dissenções renovadoras dentro do próprio partido que apelam à exigência de redefinição adaptativa às novas realidades (conduzindo à dissidência e até à expulsão de militantes históricos), o aumento da abstenção eleitoral, contemporânea da despolitização das sociedades, a crise verificada nos partidos políticos que ocorre a par de um fenómeno de personalização da política (e sabemos como o PCP é dentre todos, o partido político com a mais consistente estrutura organizativa...). É claro que não devemos obliterar todo o trabalho que nos últimos 30 anos em democracia (para não falar da extraordinária luta que levou a cabo no exílio, nas prisões, em caves, contra a ditadura fascista), o PCP desempenhou ao nível do governo, da acção parlamentar mas também no plano local, no apoio às populações mais excluídas. Mas era esse o seu papel, tal como, de outro modo, o é a acção da Santa Casa da Misericórdia, por exemplo.

Ao anunciar, a um mês do congresso (6 de Novembro), a sua indisponibilidade para continuar à frente dos destinos do PCP, Carlos Carvalhas cria uma crise de sucessão? Ao que parece, a sua decisão era conhecida pelo Comité Central há um ano. Entretanto, quando ainda não passaram vinte e quatro horas sobre o anúncio, eis que a comunicação social apresenta um forte «candidato», Jerónimo Sousa. Se as decisões dentro do PCP são publicitadas com um ano de desfasamento, nesse caso, o sucessor de Carvalhas na liderança do PCP é conhecido há já bastante tempo, sendo o congresso apenas um pró-forma.

A opção pela continuidade apresenta um risco imediato para um sistema de representação pluripartidária: o acentuar do enfraquecimento que o PCP enfrenta. A ruptura também não me parece solução, até porque existe todo um espaço político ocupado por outras forças partidárias (embora nesta altura, a esquerda à direita do PCP conheça interstícios desocupados...).
Em ordem a retomar o preâmbulo, a democracia representativa precisa de vozes fortes que se constituam como alternativa e reflictam as diversas clivagens ideológicas existentes na sociedade, concentrando-se porém na resolução de questões concretas. Daí ser absolutamente necessário para a qualidade da nossa democracia a existência de um PCP forte, dinâmico e actual, que não contribua para a redução do debate, que não estimule unanimismos. Reduzir o tempo de reprodução de uma cassete para 60 minutos obriga apenas à troca da mesma em menor espaço de tempo, o que poderá significar a saturação. Ora, é isto que já sucede para uma grande parte dos não militantes comunistas e o reflexo disto observa-se claramente nas urnas. Não me parece que os fracassos eleitorais do PCP se devam necessariamente à qualidade das propostas partidárias oponentes (que estaria sobreavaliada). Também não me parece que o aumento de militantes insatisfeitos se deva unicamente a lutas pelo poder ou à orfandade de um líder carismático e histórico como Álvaro Cunhal. Jerónimo Sousa nem é um líder carismático nem representa uma linha alternativa às actuais soluções, com a qual os eleitores comuns se possam identificar (seja Jerónimo Sousa seja outro seu camarada fiel à doxa, pura e crua, tal como veio ao mundo).

A questão essencial é esta: está o PCP actual em condições de responder às exigências da sociedade portuguesa, apresentando um projecto concreto e incisivo que sirva a mesma?
Isto porque, independentemente de projectos de emancipação global desta ou daquela ordem (que não devem ser escamoteados, configurando-se antes como guias), os partidos políticos não devem, em contrapartida, perder de vista o contexto em que evoluem nem a interacção com as massas, entretanto a rodopiar no centro de um imenso remoínho que as atrai inequívocamente e as engole indiferencialmente...
Ora aí está uma excelente oportunidade. É esse o grande desafio que se põe ao PCP: rejuvenescer o projecto, agilizar e vitalizar a intervenção, sem com isso perder a sua identidade.

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