29 de dezembro de 2004

em de-talhe

SUDESTE ASIÁTICO III

Os números de perdas humanas não cessam de aumentar. São apenas números mas as perdas são reais.
Sem querer responsabilizar o ocidente por tudo quanto se passa no resto do mundo e muito menos por uma falha tectónica que provavelmente se manifesta há milhares de séculos, certo é que as condições materiais de prevenção, ordenamento do território e tipo de construção, são factores que possivelmente reduziriam significativamente o número de vítimas mortais. E neste particular, ainda que países como Portugal (ver o artigo de Miguel Miranda) não possuam meios para monitorizar tsunamis, a verdade é que a probabilidade de aqui se formarem ondas gigantes é exponencialmente menor do que em oceanos como o Índico ou o Pacifico. Por outro lado, o ordenamento do território impõe regras que, por vezes e erroneamente classificamos absurdas. Um tipo de construção sólido não só constitui barreiras de protecção como não dispersa milhões de destroços acutilantemente perigosos.

Esta introdução, para fazer uma ou duas referências.

Esses instrumentos de que falei exigem recursos e legislação. Ora, o ritmo desta corrida imprimido pelo ocidente é avassalador e só sobrevivem os mais fortes. Note-se aliás como o abrandamento desse ritmo tem sido altamente danoso para as economias. Claro que entrar na corrida implica treino e recursos desigualmente distribuídos. Os competidores mais fracos viram-se naturalmente na contingência de entrar nessa corrida sem poder fazer face a imponderáveis ou situações críticas como a que se vive. Esta situação é particularmente evidente nos países mais sacrificados, reproduzindo o «capital de miséria» e hipotecando a capacidade para diminuir os desequilíbrios. De resto, esta situação decorre de condições históricas, culturais e físicas conhecidas e do conhecimento geral.

É aqui que o ocidente tem responsabilidades e convém não esquecer que muitos dos países afectados neste momento assentam parcialmente a sua economia na mão-de-obra barata e na baixa qualificação, incapaz de explorar os seus próprios recursos naturais. Na verdade, somos nós que os exploramos, aliás, depredamos. Ver a este respeito o texto Globalização, Domínio e Sociedade de Risco publicado na ACTAE: os riscos produzidos pela natureza foram já largamente ultrapassados pelos riscos produzidos pela sociedade.
Mas continuamos a correr, sem saber bem para onde e sem nos importarmos se somos acompanhados, se fica gente para trás.

Por outro lado, a investigação científica mundial (maioritariamente a cargo dos países desenvolvidos), encontra-se demasiadamente dependente da economia e das empresas que a patrocinam, seja na indústria farmacêutica, espacial, militar, entre outras. Tudo tem custos e sendo os recursos escassos, a monitorização de tsunamis não entra certamente no topo de prioridades de países ocupados em debelar doenças endémicas, combater a fome e a pobreza ou infelizmente a produzir sofrimento adicional com guerras despoletadas por interesses pessoais, étnicos ou oligárquicos...
Talvez John Rawls tivesse afinal razão em A Lei dos Povos, tornando a humanidade um só povo dentro do primado da democracia (condição fulcral, pelas razões que inteligentemente aponta), ainda que para isso se tivesse que trazer à decência, povos não decentes... Alguns meios pelos quais ele propõe esse contrato social é que esbarram com estrondo em concepções que hoje temos por universais.

Mas as leis da economia não estão na natureza, pelo menos estas, apesar de elas próprias em articulação com a acção política, terem condições para suavizar o sofrimento humano. Só assim fazem sentido. Afinal para que serve a cultura senão para compensar os desequilíbrios da natureza?

Não obstante, é em momentos de extrema dificuldade como os que se apresentam àquelas pessoas que é experimentado, como que um retorno à natureza (em concreto, à leis da natureza que apelam ao instinto de sobrevivência e comunidade), e a prova disso é a solidariedade espontânea entre as pessoas, unidas por laços que ultrapassam a barreira da religião, do estatuto económico e da nacionalidade. Uma redefinição do espírito de comunidade de Tönnies, um reforço da solidariedade mecânica de Durkheim.
São momentos como estes que se alude à necessidade de trabalhar em conjunto, momentos em que se compreende a verdadeira dimensão da espécie humana no confronto com a magnitude da natureza, momentos em que a espécie humana se cumpre enquanto tal, enquanto uma única comunidade animal disposta a empreender uma viagem no mesmo vagão.

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