Eram 7 da manhã, ia ao pão e cruzei-me com um indivíduo perdido num pijama de hospital, chinelos, cabelo desgrenhado, barba de uma semana e olheiras denunciadoras. Rondava a casa dos trinta mal feitos e apesar de tudo, não tinha um ar intoxicado ou excessivamente andrajoso. O previsível odor a hortaliças podres não chegou ao lado de cá do passeio. Uma brisa o terá pulverizado, atrás do monóxido de uma velha Peugeot de caixa aberta cor de ferrugem, que se arrastava pesadamente vinda das quintas da periferia.
Fui invadido por um sentimento de indignação, agudizado por viver num país sobranceiramente ocupado com grandes obras de cosmética vertebrada, votando ao desprezo ingrato os que um dia contribuíram para a construção da grande «mansão» ou simplesmente porque foram fulminados por uma série de circunstâncias da vida que, de uma forma ou de outra os tolheu desprevenidos.
Senti um ímpeto irracional e precipitei-me na sua sua direcção, animado por aquele sentimento de solidariedade matinal que nos impele para a «boa acção do dia». Provavelmente, tal deveu-se a uma análise racional pré-consciente que legitimasse o fecho do dia, logo ali, em matéria de imperativos categóricos. Ajudar velhinhas a passar para o outro lado da rua é coisa para «meninos vestidos de parvo» ou para «parvos vestidos de menino». O meu grau de exigência é manifestamente superior e com esta acção, teria certamente o dia ganho.
Porém, precisamente no momento em que a sola do sapato se preparava para desafiar o asfalto e o lancil, vejo-o a falar com um magrizelas que saia de um automóvel, com cara de pai, que lhe passa um objecto suspeito para a mão e se dirige descontraidamente para a caixa Multibanco.
Agastado por ingenuamente ter considerado intervir em defesa da dignidade humana, tomei como caminho o de casa, sem regressar com o pão fresco na talega e jurei não mais pensar em solidariedades bacocas e lirismos absurdos num mundo colonizado por cães e oportunistas.
Contudo, durante a tarde reencontrei uma pessoa conhecida que não via há demasiado, trocamos as impressões habituais sobre o trabalho, o tempo, a bola e quando a conversa já saturada se escapulia pelos «então vá…», eis que o amigo resolve rematar com uma tirada bestial que resultou de um encontro casual ocorrido nesta mesma manhã.
Diz ele que quando parou o automóvel para pagar umas contas na caixa de Multibanco antes de se entregar à sua rotina diária, foi abordado na rua por um conhecido seu surpreendentemente com aspecto miserável, de pijama e cabelo desgrenhado, pedindo-lhe um enorme favor. De início horrorizou-se pelo insólito da situação, confessou-me a pessoa.
Afinal, não se tratara de um novo mendigo ou de mais um «mestre da vida» desta aldeola. Ao contrário, o indigente ter-lhe-á solicitado encarecidamente o telemóvel (pudera) para pedir as chaves de casa a alguém que lhas guardava para situações de emergência como esta. Ao que parece, após acordar, terá saído do seu apartamento, subindo dois andares para recolher alguma roupa estendida no terraço do prédio. Ao fechar atrás de si a porta do apartamento, embriagado de sono, não se fez acompanhar das chaves e viu-se na rua em pijama, sem poder regressar a casa, pressionado por um compromisso a 100 Km de distância e perseguido com o olhar impiedoso e sancionatório dos transeuntes.
Acontece que já não era a primeira vez que tal lhe acontecia. Na primeira vez, valeram-lhe os bombeiros, que após autorização da PSP, içaram as longas escadas até à varanda tendo pontapeado furiosamente a porta de vidro até não restarem lâminas de vidro nas borrachas. Esta foi a quarta experiência do género, talvez a segunda mais traumática e a segunda menos cara.
Não é minha pretensão condenar ninguém mas há pessoas que deveriam ser consideradas inimputáveis. Nem para tomar conta de um vaso de flores…
Fui invadido por um sentimento de indignação, agudizado por viver num país sobranceiramente ocupado com grandes obras de cosmética vertebrada, votando ao desprezo ingrato os que um dia contribuíram para a construção da grande «mansão» ou simplesmente porque foram fulminados por uma série de circunstâncias da vida que, de uma forma ou de outra os tolheu desprevenidos.
Senti um ímpeto irracional e precipitei-me na sua sua direcção, animado por aquele sentimento de solidariedade matinal que nos impele para a «boa acção do dia». Provavelmente, tal deveu-se a uma análise racional pré-consciente que legitimasse o fecho do dia, logo ali, em matéria de imperativos categóricos. Ajudar velhinhas a passar para o outro lado da rua é coisa para «meninos vestidos de parvo» ou para «parvos vestidos de menino». O meu grau de exigência é manifestamente superior e com esta acção, teria certamente o dia ganho.
Porém, precisamente no momento em que a sola do sapato se preparava para desafiar o asfalto e o lancil, vejo-o a falar com um magrizelas que saia de um automóvel, com cara de pai, que lhe passa um objecto suspeito para a mão e se dirige descontraidamente para a caixa Multibanco.
Agastado por ingenuamente ter considerado intervir em defesa da dignidade humana, tomei como caminho o de casa, sem regressar com o pão fresco na talega e jurei não mais pensar em solidariedades bacocas e lirismos absurdos num mundo colonizado por cães e oportunistas.
Contudo, durante a tarde reencontrei uma pessoa conhecida que não via há demasiado, trocamos as impressões habituais sobre o trabalho, o tempo, a bola e quando a conversa já saturada se escapulia pelos «então vá…», eis que o amigo resolve rematar com uma tirada bestial que resultou de um encontro casual ocorrido nesta mesma manhã.
Diz ele que quando parou o automóvel para pagar umas contas na caixa de Multibanco antes de se entregar à sua rotina diária, foi abordado na rua por um conhecido seu surpreendentemente com aspecto miserável, de pijama e cabelo desgrenhado, pedindo-lhe um enorme favor. De início horrorizou-se pelo insólito da situação, confessou-me a pessoa.
Afinal, não se tratara de um novo mendigo ou de mais um «mestre da vida» desta aldeola. Ao contrário, o indigente ter-lhe-á solicitado encarecidamente o telemóvel (pudera) para pedir as chaves de casa a alguém que lhas guardava para situações de emergência como esta. Ao que parece, após acordar, terá saído do seu apartamento, subindo dois andares para recolher alguma roupa estendida no terraço do prédio. Ao fechar atrás de si a porta do apartamento, embriagado de sono, não se fez acompanhar das chaves e viu-se na rua em pijama, sem poder regressar a casa, pressionado por um compromisso a 100 Km de distância e perseguido com o olhar impiedoso e sancionatório dos transeuntes.
Acontece que já não era a primeira vez que tal lhe acontecia. Na primeira vez, valeram-lhe os bombeiros, que após autorização da PSP, içaram as longas escadas até à varanda tendo pontapeado furiosamente a porta de vidro até não restarem lâminas de vidro nas borrachas. Esta foi a quarta experiência do género, talvez a segunda mais traumática e a segunda menos cara.
Não é minha pretensão condenar ninguém mas há pessoas que deveriam ser consideradas inimputáveis. Nem para tomar conta de um vaso de flores…
PS: e não tomei o pequeno-almoço.
Sem comentários:
Enviar um comentário