16 de março de 2006

Arghh




Eduard Munch, The Scream, 1893
Eram sete e meia da manhã, eram rigorosamente sete e meia, as horas que o mostrador exibia. Eram sete e meia quando o quarto despertou em sobressalto pelo estridente som electrónico do despertador. Intensificou-se a sonoridade à medida que X descolou sem pressas o crânio do travesseiro, lavado em suor. Concentrou esforçadamente os olhos no único foco de luz projectado no quarto, em tons púrpura, certificando-se num movimento mecânico do inevitável chamamento. A rotina habitual. Um dia e outro, e outro ainda. Assim se sucediam os dias, ordeiramente alinhados como uma companhia em parada de guerreiros persas, a perder de vista. Atrás de um vem outro e assim sucessivamente, sem termo observável a partir de um ângulo oblíquo, paralelo ou perpendicular. Uma linearidade monótona e implacável. Acordar diariamente para sofrer a ofensa daquele ruído ecoando nos recantos do seu cérebro. Acordar uma e outra vez, acordar uma vez mais. Mas X não se queixava, afinal de contas, todos os que conhecia padeciam do mesmo. Era assim. Uma ordem natural, sem merdas.

Um único movimento revolveu com denodo o cortinado da janela e o dia mostrou-se. Não só se mostrou como invadiu o quarto de uma claridade abrasiva para as frágeis íris de X, ainda mal acostumadas às partículas em suspensão. As pálpebras contraíram-se. A indecifrável treva até esse momento, adquiriu então formas e contornos coloridos e matizadas pelos dourados influxos de luz matinal. Um dia primaveril, aromático e generoso entrou pelo quarto adentro, misturando-se com o intenso odor a suor e mofo.

A mal consumida beata do último cigarro fumado durante a noite jazia vertical no cinzeiro, atolado de cinza e resquícios de cigarros, fósforos siderados e outros resíduos. X olhou demoradamente em redor, com indiferença e levou a pirisca à boca. Com a mão esquerda tacteou em busca de equilíbrio na aduela da janela e acendeu o que restava do cigarro com a mão direita. Olhou novamente em redor e inspirou profundamente. Uma leve brisa arrepiou-lhe o estômago.

Absorto em pensamentos vãos e inúteis, foi subitamente interrompido por incessantes e nervosas pancadas na porta do seu quarto. Reagiu e acenou com a cabeça à mãe que entretanto entrara, acometida por uma estranha inquietação.
– É verdade, o que se diz por aí? Que és trostkista-cristão?
Permaneceu imperturbável e retorquiu – Não digas asneiras, de onde te veio essa agora?
– Foi o Sr. Eleutério da…
– Não digas mais! Não é o momento oportuno para estarmos a falar dessas coisas. Afiançou. – Não sei de onde veio tal coisa. Fui visto há dias com um tipo que dizem ser trotskista-cristão. Falamos de assuntos normais, de trabalho, é tudo. Somos amigos. Que mal há nisso?
– E o que vai ser da tua vida agora? Interrogou a mãe em choque.
– Não há mais nada a fazer aqui, terei que partir.
– Mas se não és trotskista-cristão, filho, não se pode fazer nada? Toma, fuma um cigarro!
– Nada se pode contra essa gente, sou agora um homem marcado. Este quarto cheira horrivelmente. E partiu espavorido. Sem terminar a beata e sem tomar o pequeno-almoço, em alvoroço e sem norte.

3 comentários:

EM ROID HALL disse...

Bom. Muito Bom.

DelEnd disse...

muito bom! Não sei se era para rir o u não, mas eu achei muita piada, talvez porque conheço meios pequenos, em que realidades semelhantes à retratada ainda acontecem. convenções....

ARV disse...

Um problema de escala, os «pequenos» e «grandes» meios.