30 de agosto de 2006

Dos Fracos Não Reza a História...




Os factos históricos que dão corpo à representação que temos do passado, resultam de uma reconstrução técnica, ideológica e cultural, a qual converte e reifica a pretensa factualidade através de um processo de construção histórica da verdade, fruto de consensos e convenções. Os tempos encarregam-se de lhe conferir uma objectividade que se desembaraça progressivamente da multidimensionalidade, visando simplificar a compreensão dos momentos e percursos históricos.

Os manuais escolares de até há bem pouco tempo por exemplo, reproduziam em espaço de socialização secundária, concepções francamente grosseiras sobre a ocupação árabe da península ibérica a partir do séc. VIII. Para os petizes, os árabes representavam [e nalguns casos ainda representam], a barbárie e a infidelidade religiosa que urgia escorraçar.

Essa era sobretudo a visão da Igreja, para a qual a doutrina do reino se deveria confundir com a sua. Para a qual ainda, as cruzadas mais não eram do que a primordial necessidade em restituir a suprema divindade às coisas e eleitos de Deus. A sua divindade, esse Deus legitimador das maiores atrocidades.
Durante séculos, aos povos árabes foram obliteradas as importantes responsabilidades civilizacionais que lhes couberam e que posteriormente, o início da Idade Média fez regredir até um nível ligeiramente superior do que o experimentado no final da Idade do Ferro. Não só nos fundamentos materiais da cultura como também nos imateriais.

De resto, segundo Bryan Ward-Perkins, a queda do Império de Roma às mãos dos invasores germânicos (séc. V) terá significado um retrocesso civilizacional operado sobretudo no Império do Ocidente, que só haveria de recuperar com o alvor da renascença (já que o Império do Oriente se dissolve em rigor, com a Queda de Constantinopla em 1453). Com a dissolução do império, dissolveu-se uma economia complexa. Para dar alguns exemplos, a tributação fiscal passou a fazer-se em géneros; das casas em pedra e telhado de telha passou-se à madeira e telhados de colmo; da disseminação quotidiana, geográfica e social de peças e utensílios de cerâmica fina, retrocedeu-se para a utilização de peças de cerâmica grosseira e só acessível a alguns; dos «cartazes» públicos passou-se à alfabetização apenas acessível ao clero.
Estas e tantíssimas outras mudanças começam agora a ser debatidas e reveladas, questionando a visão consolidada de um império que cai de podre e em resultado directo da destruição trazida pelas invasões. Ward-Perkins rejeita esse argumento dominante, reconstruindo a verdade. Em todo o caso, a sua verdade, cabendo ao mundo validá-la…

De qualquer forma, este tipo de trabalho só é possível porque os progressos tecnológicos, a racionalidade científica e a inconformidade de alguns o possibilitam. Apesar de em muitos casos, apenas ser possível recriar uma perspectiva alternativa sem qualquer oportunidade de questionar a verdade negociada e imposta.

A história universal é contada normalmente com recurso a diversos níveis de fontes: os registos documentais, os artefactos e legado patrimonial, os elementos biogenéticos, a memória colectiva e, acima de tudo, a história unilateralmente contada pelos povos declarados vencedores de disputas ou guerras. A célebre fórmula «dos fracos não reza a história» é bem elucidativa a este respeito.

E é neste campo que a história sofre incursões, imposições, nuances e construções movidas por povos cuja acção histórica é tanto mais falaciosamente verdadeira quanto o (pre)domínio sobre os restantes e o crónico desrespeito por regras morais, legais e éticas de povos como os israelitas ou os americanos. E outros casos de povos cuja supremacia no passado os tornou mais «históricos» que outros. Nas relações internacionais em particular, vigora a lei do mais forte, e o mais forte não o tem sido por reunir em exclusivo, características mutualistas, solidárias e morais acima de qualquer suspeita…

Neste caso e como atravessa o nosso momento histórico, aquele em que se redige e actualiza a nossa história, é particularmente angustiante compreender que a mesma está diariamente a ser registada segundo os pergaminhos da cultura dominante e ao arrepio da equidade mundial, em sociedades ditas civilizadas, democráticas e solidárias.

É particularmente tormentoso que Israel simbolize a típica criança mimada e super-protegida a quem são perdoadas todas as maldades e excentricidades. Aquela criança dos cartoons que personifica o terror dos animais domésticos que ela mesmo exigiu.

Uma vez que o resto dos povos no mundo não passa de servos apáticos, títeres fanfarrões ou lunáticos beatos, resta-nos que no futuro, outros investigadores venham questionar o curso da história, caso nesse tempo as nossas sociedades ainda conservem a liberdade de expressão.

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