29 de dezembro de 2006

O Natal é Quando um Homem Quiser




… Durante a época natalícia, os bons cristãos apregoam com especial dedicação a palavra de Cristo, ritualizam o seu nascimento e procuram ajustar atitudes e comportamentos à boa moral e ensinamentos que o Messias lhes transmitiu. Na época natalícia em particular.

Sara, a criança de Monção com dois anos e meio que foi ontem autopsiada, é naturalmente uma excepção a este período de paz, harmonia e solidariedade entre os indivíduos e os povos. Uma excepção à excepção pois a única e visível metamorfose operada no mundo durante esta quadra é a obsessiva atenção dada a renas e presépios, doces e jantares faustosos, joalharia e brinquedos e ocidentalizados potlatchs na sua forma agonística (a obrigação de dar e receber levada à extremada ostentação da dádiva).

Afastada a «complexa» argumentação dos pais, segundo os quais a menina teria caído das escadas e, não satisfeita, teria caído uma segunda vez só para chatear, os pecados de Sara em pleno período natalício teriam sido de tal ordem irremediáveis que só uma exemplar surra poderia de algum modo sossegar os zelosos progenitores. Definitivamente.

À semelhança de tantos outros casos de violência infantil e pais incompetentes, cuja recorrência denota uma transversalidade temporal que não se restringe obviamente ao natal, coloca-se inevitavelmente a questão sobre o que fazer para evitar estas ocorrências sem melindrar o direito à procriação nem castrar as liberdades consagradas constitucionalmente com o recurso ao controlo total sobre os indivíduos.

Há os que defendem acerrimamente a interrupção voluntária da gravidez (IVG). Porém tal possibilidade enferma de uma inequívoca limitação, a qual decorre da incapacidade de previsão mecânica da acção humana. Ou seja, esbarra naquilo que aqui denominaremos ausência de si ou a incompreensão da natureza humana e da posição que cada um ocupa na primeira. Por conseguinte, a IVG só pode ser considerada de forma razoável quando o sujeito re-conhece egocentricamente a sua posição no mundo e compreende de forma altruísta a dimensão da vida humana no momento em que aceita a concepção. Escolhe, porque o universo da natureza não é coincidente com o universo da cultura, apesar da colonização do primeiro pelo segundo.

Que fazer nestes casos de ausência de si, em que bebés e crianças indefesos são reificados como objecto de terapia psicótico-depressiva, venda, elemento produtivo ou simplesmente detritos humanos? Permanece a incógnita. Não obstante a unanimidade sobre o valor da vida humana, ficam por ratificar os tratos que lhe são dispensados pois que muitos deles estão longe de lhe corresponder [ao valor da vida] em humanidade.

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