8 de janeiro de 2007

Código Hamurabi


Masks confronting death, James Ensor, 1888

Não obstante as diferenças que separam xiitas de judeus, verifica-se todavia uma aproximação em matéria de Direito. A condenação e execução sumária de Saddam Hussein remetem para a aplicação do hebraico Código de Hamurabi (1700 a.C. na Babilónia, território a que corresponde nos nossos dias o Iraque).

Como se sabe, a sua aplicação consiste na justa reciprocidade do crime e da pena, definindo-se numa linguagem mais prosaica e mundana pela conhecida expressão olho por olho, dente por dente.

Não é de estranhar que este tipo de raciocínio se encontre tão difundido e partilhado por etnias e religiões beligerantes, afinal de contas, ambas são subsidiárias de Abraão e há que considerar os processos de transferência e reprodução por osmose, inerentes ao misticismo daquela terra que também terá os seus motivos para ser santa.

Porém, da aplicação do Código Hamurabi por judeus e muçulmanos (Lex Talionis ou Lei de Talião, na versão do Direito Romano em que o Direito ocidental se inspira), decorrem duas contradições essenciais.

Em primeiro lugar, a pretensa superioridade moral das religiões em causa, para as quais não só a vida humana e o perdão são particularmente valorizados, como são rejeitados os sentimentos de vingança e violência. Portanto, a pena de morte não será, à luz dos valores apregoados, defensável no interior destas religiões, pelo que o argumento religioso não pode ser válido para o governo iraquiano nem para os estados americanos que a conservam. Mas esta não é uma razão razoável em virtude da instrumentalização a que são sujeitas as crenças e fé humanas por estados, reinos, clãs, seitas e igrejas.

A segunda contradição releva da deficiente aplicação do Código Hamurabi. Ora, se o ditador foi condenado, entre outras coisas, por despejar agentes biológicos sobre os kurdos, então seria admissível que fosse dada a mesma oportunidade àqueles: gaseificar o artista. Neste caso, colocar-se-ia certamente a dúvida: será que ele sobreviveria para que a diversidade de condenações que pendiam sobre ele fosse executadas na justa medida da reciprocidade?

Aceita-se portanto o angustiante dilema que terá devastado as justas autoridades iraquianas. Perante tal conflito interior, terão optado por uma fórmula síntese, que simbolizasse todos os atrozes crimes por que Saddam foi condenado. Então, o enforcamento afigurou-se-lhes como o mecanismo que melhor simbolizasse a fórmula da execução. Vá-se lá perceber porquê o enforcamento e porque não o fuzilamento, o apedrejamento, a inalação de gás, a queda a 100 metros do solo, o envenenamento por ingestão de fezes de porco ou outra coisa qualquer.

O que as autoridades ocidentais não conseguiram compreender foi que a execução por enforcamento consistia ainda na vociferação de insultos e palavras de ódio para que ele se certificasse, na ordem da partida, que não deixaria saudades. Puro etnocentrismo dos países ocidentais, incapazes de compreender e aceitar os costumes ancestrais de civilizações com milhares de anos…

Por razões logísticas e sempre apostado em consolidar a hipocrisia entre os povos, sou particularmente defensor da aplicabilidade do Código de Hamurabi em circunstâncias ligeiramente diferentes. Para que não restassem dúvidas e para que todos ficassem satisfeitos, a execução não se restringiria a Saddam Hussein. Os seus sósias também deveriam ser executados. Se não fossem suficientes, que se contratassem mais alguns. Ou então, que se fizessem máscaras especiais pois não haveriam de faltar candidatos…

2 comentários:

Anónimo disse...

Sobre a lei de Talião: mais conhecida por "olho por olho, dente por dente", gostaria de dizer que foi mais ou menos aplicada nos casos de Saddam Hussein e, mais recentemente, de Barzan al-Tikrit e Awad al-Bandar, uma vez que a sentença se refere ao linchamento de 148 pessoas, em Dujail. Infelizmente, nenhum destes homens poderá agora ser punido pela sua responsabilidade no gaseamento dos curdos, na operação de Al-Anfal, em 1988, e, em Halabja, nesse mesmo ano, provocando cerca de 180 mil mortos. Uma pena não terem esperado para os gasear e, assim sim, aplicar devidamente a lei de Talião...

Anónimo disse...

Uma muito má digestão do "Código Hamurabi"