1 de fevereiro de 2007

Assembleia-geral da SHE

A participação directa em democracia é um fenómeno extraordinariamente curioso, dada a sua concomitância com o circense da coisa, com o sensacionalismo e, sobretudo, com a possibilidade de exacerbar sentimentos reprimidos, vociferar ódios, desenterrar vinganças latentes e até, projectar nas assembleias de ouvintes a representação imagética de uma sessão de psicoterapia. Por vezes, há inclusive os que participam com vista à prossecução do interesse público, procurando aplicar de forma razoável e sensata a equipagem racional com que a natureza os dotou. Assimetricamente, bem entendido.

Assim calhou ontem na Assembleia-geral de Sócios da Sociedade Harmonia Eborense. A fauna era diversificada, havia de todas as cores e feitios, para todos os gostos e desgostos. O bonacheirão perdido nas contas, nos estatutos e no convívio de Quarta à noite; o alarve a arrotar dentes d’alho pelos cantos da boca, ministrando impropérios contra os males instalados na sua própria memória; o imberbe revoltado apostado em fazer-se ouvir acerca dos seus nadas e dos seus quês primordiais, num turbilhão existencial profundo e piedoso; o apócrifo mensageiro da idoneidade volvida casacão, apelando insistente e solenemente à nobreza da legalidade, ao costume e à tradição da amada instituição numa inglória e peregrina reposição da verdade fugidia, julgando-a a mais digna representante da realidade feita propriedade privada de si e dos seus; os atacados na sua honrada existência exigindo reparos por danos morais e outros; o insistente e mentecapto embaixador da mais absurda masculinidade medieval; a chusma de lacaios mal ensaiados, acéfalos e saloios. Mas também, a douta personificação da sensatez e os que, como eu, estavam. Apenas.

Nunca lá tinha visto tanta gente... exortada pela Direcção a votar uma moção de confiança a si mesma, com base numa decisão executiva e perfeitamente enquadrável nas atribuições e competências que lhe assistem (consignadas nos Estatutos da colectividade), as quais dispensam tal consulta, a menos que esta seja requerida pelos sócios. E sem que, ao abrigo dessa moção de confiança fosse questionada a actuação geral do órgão executivo ao longo do mandato, porque é em função desse desempenho que uma Direcção poderá reforçar a legitimidade democrática escrutinada. Ou não.

Cuidado Casimiro, cuidado Casimiro,
Cuidado com as imitações, ó Casimiro,
Cuidado minha gente, cuidado minha gente,
Cuidado justamente com as imitações

Sérgio Godinho


3 comentários:

Anónimo disse...

Há mais de 10 anos que oiço o "Serjolas" e continuo a considerá-lo o melhor compositor português do estlilo canção popular-pop-rock e trá-lá-lá.
Sensatamente intemporal nos mais diversificados assuntos. Bom almoço Sérgio! Vê bem como a malta continua a apoiar-se na tua fantástica e inimitável métrica, na simplicidade, intensidade das letras, presença...para melhor comunicar.

Quanto à Assembleia Geral da Sociedade (Des)Harmonia Eborense, não estive presente, não sou sócio, não devia falar, mas...enfim, como adoro "picar miolos", aqui vai:

Conheço um ou outro membro do órgão executivo da dita Desarmonia e...caríssimo ARV, cuidado com as analogias.

Não só pelo trabalho desenvolvido nos últimos 3 anos e meio, como pela nobreza desse mesmo órgão executivo em querer "deixar a casa satisfatoriamente arrumada", quando apenas faltam poucos meses para cessarem funções, cuidado com as analogias.
Assim, as direcções vindouras poderão iniciar os seus trabalhos em condições que esse órgão não teve ou com as quais não quis compactuar, procurando resolvê-las com a maior sensatez possível.Nem que isso implique dar um novo formato ao que já por si só, não seria necessário re(formatar.

Não esquecer que o trabalho voluntário em organizações desta dimensão e com os objectivos propostos, é duro, cansa, mói, desgasta e raramente existem benefícios na relação empenho-ganhos finais (em tudo o que esse conceito implica).E que cada órgão executivo constitui um sub-sistema, com características muito próprias, exigindo um enorme empenho na sua própria gestão. Isto se, na realidade a intenção fôr o "amor à camisola".

Cuidado com as analogias.

ARCANJO DUDE

ARV disse...

Não está nem esteve em causa o desempenho geral da actual direcção da Harmonia, por quem tenho bastante respeito pessoal e profissional. Por essa razão, não concordei com a exortação aos sócios no sentido de formular uma moção de confiança ou de censura a um acto isolado, sem que fosse exigido pelos sócios da SHE em Assembleia-geral.

Anónimo disse...

Claro.

A analogia é claramente fundamentada e compreensível.

Porém é preciso ter cuidado para não fragilizarmos mais a coisa.

O que se passa ao nível do associativismo ("desinteressado") na generalidade, é a debilidade histórica ao nível do desenvolvimento interno de direitos óbvios e legalizados e sua prossecução pelas próprias associações ao longo dos vários mandatos.
Esta lacuna ao encontrar-se lado a lado com a falta de suportes institucionais e cívicos, acaba por fragilizar os "desgraçados" que por este ou aquele objectivo suam e que muitas vezes quando se propõem a determinados trabalhos, nem imaginam sequer o tipo de tramas que vão encontrar tecidas em redor dos pseudo-fundamentos.
Injustiça atrás de injustiça.

Estes são, normalmente os que desejam começar por eliminar as ditas lacunas. Os chatos da coisa.Os que se propõem às mais difíceis tarefas. Carcereiros do laissez-faire estupidificante.Os que deixam a sua marcaçãozita nos bancos do jardim.Inovadores. Sensatos.Confundidos muitas vezes com os "só-ideológicos". Nada mais errado. O pessoal pratica, as duas coisas.

Tentativas de "mudar o mundo". Certas ou erradas, com maior ou menor luta, melhores ou piores resultados, a intenção com que se "faz a coisa" conta muito. Por vezes são necessárias chamadas de atenção. Para os sócios e outras pessoas directa ou indirectamente envolvidas nos assuntos.
Para os mais pobres de espírito, aos quais ainda se deseja dar "todo o tempo do mundo". E para eles próprios também.

A coerência é uma das virtudes mais difíceis de alcançar nos dias de hoje.

Espelhos uns dos outros? Sim, sem dúvida.

DUDE ABATIDO AO FINAL DA SEMANA