11 de fevereiro de 2007

Aufklärung

Frontispício da Encyclopédie (1772) Charles-Nicolas Cochin


Há dias, o Primeiro-ministro deste ameno tugúrio afiançava peremptoriamente que agora sim, volvidos 32 anos de vivência em «democracia consolidada», o povo português exibia sinais claros de maturidade para manifestar a sua vontade, em consciência, numa consulta directa.

Esta inusitada afirmação, resgatada do baú do imemorial paternalismo dos governantes portugueses, encerra em si mesma uma contradição fundamental. Então, não significa a democracia – conceptual e etimologicamente – o governo do povo? Então e não é a democracia directa (de que o referendo é um instrumento), a mais genuína expressão desse governo, na sua génese praticada na ágora ateniense há 2500 anos?

Ora, se o Primeiro-ministro de um Estado democrático, regido pelas leis do direito, manifesta publicamente volições desta monta, talvez fosse mais honesto reformular conceitos e princípios. Desde logo, concedendo ao sistema de governação português, o estatuto de stick to the plan’s democratic working process. Ou seja, um estatuto de democracia embrionária, cuja observação no tempo se há-de prolongar até que o último cidadão português que não seja inimputável, interiorize de forma sólida os princípios e valores democráticos. Até que todo e qualquer português se sinta com competência subjectiva suficiente para manifestar a sua vontade em concordância com tais princípios e valores. Com bom-senso, razoabilidade e decência. Que é assim que deve ser...

Assim sendo, talvez o Sr. Primeiro-ministro pretendesse afirmar verdadeiramente que 32 anos após a queda de um regime usurpador das liberdades individuais, começam a verificar-se agora condições para que o país renegue o obscurantismo, supere as trevas e se lance no desafio da modernidade, da racionalidade e do conhecimento.

Todavia, tal não deverá suceder nas próximas décadas, a avaliar pela desenfreada corrida às urnas e pelo eterno apego a um atraso estrutural, reificado pelo dilecto adágio português, «deixar a coisa a marinar». Ad eternum… como é bom de ver também na democracia portuguesa.
PS: se não é pela praia, é pela chuva. Se não for nem uma nem outra, há-se ser uma coisa qualquer. Aufklärung...

Sem comentários: