29 de junho de 2009

Poder Absoluto

Da aglutinação das palavras demo e kratos resulta a célebre fórmula «governo do povo». Será esta ideia condição suficiente para justificar alterações de humores com repercussões de fundo?


Na democracia representativa, forma de governação mais corrente nas democracias contemporâneas, espera-se que os cidadãos escolham entre propostas políticas alternativas de governação. Mas não se espera que questionem a totalidade do sistema político num determinado momento, sem reflexão e sem conhecimento cabal das consequências que advêm de uma dada decisão permeável à instabilidade climatérica. Em suma, em democracia não se espera que as transformações estruturais sejam decididas pelo povo de forma leviana e irresponsável, a quente, porque está em causa o bem-estar geral das actuais e das próximas gerações.


Em contrapartida, as revoluções que conduziram historicamente a alterações de paradigmas podem estar mais ou menos latentes na sociedade, podem incluir maior ou menor ruptura social, podem justificar mais ou menos derramamento de sangue. Mas são revoluções, processos dinâmicos de ruptura que se assumem como tal. Às claras. São transições. Coisas como «Revolução Islâmica» e «Revolução Cultural» deixam de o ser à medida que se consolidam as suas instituições e as populações interiorizam a nova ordem.


Mas na Venezuela ou nas Honduras, são desejadas transformações formuladas ad hominem que incidam primeiramente no status quo do líder, daí resultando uma fórmula estranhamente semelhante à adoptada por países como a Coreia do Norte. Nestes casos, assumindo a manipulação dos próprios instrumentos da democracia da forma mais populista ao recrutar para a barricada dos espoliados a parcela de população mais desfavorecida. Do outro lado da barricada estão os gatunos, os ladrões, em suma, os marranos da contemporaneidade.


Por «muito» que custe a esses líderes, na democracia não pode caber o culto «monárquico-fascista» da personalidade nem o roubo descarado. Esse é outro sistema político ou, no limite, um vão projecto democrático. E é justamente isso que Chavez e Zelaya procuram fazer através da utilização abusiva de instrumentos democráticos como o referendo, subjugando os princípios e valores democráticos à sua ambição de poder, aos seus caprichos pessoais. Para quê insistir então numa ideia de democracia?


O poder absoluto não é compatível com as aspirações a modelos de governação democrática, nem nesses países nem em qualquer outra parte do mundo. A esse respeito, o mesmo se pode constatar no Irão, Angola, Birmânia e tantos outros países, alguns deles, ocidentais. Embora o descaramento seja mais refinado no hemisfério norte e também seja aqui que os valores democráticos estão mais disseminados, pelo menos do ponto de vista formal…


A democracia não se exporta nem se transacciona como num mercado de frutas. Pratica-se! E esses indivíduos têm que fazer uma escolha que se cifra entre a adopção plena dos valores e princípios democráticos, e a revolução onde possam conquistar a legitimidade de ser aquilo com que mais fantasiam desde crianças. Uns, movidos pela vingança, outros pelo poder, outros pela fortuna, outros pelo lugar na história. Mas, geralmente, pelos piores motivos e com as piores consequências para aqueles cujos direitos dizem defender.



PS: Como é evidente, também não são solução as reacções dos militares hondurenhos ou as chacinas de presidenciáveis na Guiné-Bissau. Contudo, são mais coerentes com os respectivos regimes do que se possa imaginar à primeira vista.

9 comentários:

João disse...

depende daquilo que considerares "condição suficiente" e "repercussões de fundo".

ARV disse...

R: alterações estruturais que não representam um contributo mas sim uma desfiguração democrática, motivadas pelo desejo circunstancial de posse de poder ou prevalência de um status quo. Mais prosaicamente, impedir que se albarde o burro à vontade do dono. Ora, se os donos são muitos e se sucedem uns aos outros, é expectável que o burro esteja acessível a todos eles...

João disse...

sempre houve abutres a pairar sobre leões moribundos. sem terem qualquer responsabilidade sobre a sua morte, sugá-lo-ão até ao osso. também na política vigora a lei de mercado. a moeda de troca parece que é a lambidela (de botas, de cús ou de egos, cada uma com seu valor). a questão é: como é que um povo cada vez mais letrado se sujeita aos humores dos abutres?
r: entre ver um leão a morrer ou uns abutres a comer, preferimos o gesto dos abutres. dá menos trabalho ver os abutres a comer do que evitar que o leão morra.

Anónimo disse...

como é que um povo cada vez mais letrado?

Cidadania, formação, educação é o que falta a este povo.
Quantas pessoas são doutoras e engenheiras e não Têm qualquer tipo de direitos civicos?
Quantas pessoas têm nivel secundário superior e são mal formadas?

O facto de cada vez mais pessoas terem licenciaturas, significará alguma vez que tenham formação

Não interessa apenas ler e escrever, é preciso aprender a questionar as coisas, a por em causa, a não encolher os ombros, a ser reivindicativo, etc...E isto sim falta ao povo português

João disse...

sr anónimo, letrado, de letras, significa que há mais pessoas com ferramentas/capacidades para ler e escrever, se são mal-formadas, culpe o sistema de ensino, culpe o estado, culpe as famílias, os patrões, enfim, culpe quem quiser mas não diga que o que é preciso é "aprender a questionar as coisas" porque isso é uma atitude e não uma capacidade.
"questionar as coisas" e "ser reivindicativo" faz-me lembrar aquelas tardes de retórica pelas arcadas da acrópole, no período clássico. é muito fácil, é demasiado fácil fazer análises críticas à luz da ética desejável. difícil é olhar em frente.
o povo português é triste, é conformado, é crítico, é negativista e não vê nada de bom em nada nem ninguém (especialmente se for político). a crise, dizia um jornalista espanhol há pouco tempo, "a crise para os portugueses é um estado de alma, eles são assim com ou sem crise". enfim... deixemos as verborreias do costume que já enjoam e façamos dos nossos dias qualquer coisa de positiva. eu tento... e o sr?

Anónimo disse...

K:

Quanta agressividade...não era preciso.
Apenas fiz uma pergunta, gosto de as fazer, gosto de trabalhar as ideias, gosto de pôr em causa as coisas, gosto de pensar.
Não concordo contigo sobre o fácil e o dificil: é fácil fazer análises criticas??

Todos os dias questiono o que acontece no mundo, não me limito a ler aquilo que os jornais colocam em destaque, procuro alternativas, gosto de saber outras coisas. Por isso de certeza luto no sentido contrário do individualismo, do egoismo: luto por um mundo melhor, todos os dias um pouco.
Não me limito a ver o que há de bom no mundo, tento que o que há de mal (segundo o meu conceito) se altere.

Ana

João disse...

Ana:

o tom "agressivo" do comentário anterior deve-se a um certo enfadamento por ouvir e ler sempre as mesmas cisas: é tudo mau, está tudo mal e somos um país de merda.

é MUITO fácil fazer análises críticas à luz da ética desejável.

cumps,
joão

Anónimo disse...

Escola em 1969 e 2009, retirado do blog pimenta negra

"As notas, sempre as notas, na mesma escola ( capitalista) de sempre, que teima em quantificar, custe o que custar…


As notas, sempre as notas, na mesmíssima escola, gerada em função das necessidades concorrenciais do capitalismo, que prefere arregimentar, classificar e quantificar as «ovelhas» do rebanho, e não tanto estimular o conhecimento, a autonomia, a independência, e o espírito crítico dos seus protagonistas ( estudantes, professores e funcionários das escolas), variáveis que não são redutíveis a simples operações de quantificação notarial, quer nos tempos da escola meritocrática ( em 1969), quer na actual escola-armazém-tutoria de cinzentismo ( conformismo) social..."


Li este artigo e não resisti, tive que o partilhar

João disse...

exacto, mais do mesmo!
deixemos de avaliar os alunos, abandonemos o capitalismo e façamos deste país uma espécie de república das bananas.

"escola-armazém-tutoria de cinzentismo ( conformismo) social", é mesmo? pensei que cada escola fosse uma escola... enfim... deve conhecê-las melhor do que eu... há ideias? alternativas? isso é que seria interessante de ler... de resto é como digo: mais do mesmo...