27 de dezembro de 2009

Nunca seja o primeiro a deixar de aplaudir!



Ultimamente as minhas leituras têm sido dedicadas a temas francamente obscurantistas e vergonhosos para a espécie humana: o totalitarismo (Hannah Arendt e Alexander Soljenytsine) e as perseguições a minorias religiosas (Noah Gordon e Richard Zimler). É natural que o interesse com que as consumo também seja motivado por circunstâncias contextuais marcadas por escutas telefónicas, pelas suspeitas de livre arbítrio de pendor político e tantos outros pontos negros que pululam na política doméstica.

A passagem que segue adiante, apesar de dolorosamente verosímil, é paradoxal e estupidamente hilariante. E evocativa de um processo agonístico tal como as variantes de potlacht identificadas em tribos ao longo da costa oeste dos EUA por Ruth Benedict. À obrigação de dar e à obrigação de receber (a troca simbólica sistematizada por Marcel Mauss na sequência dos estudos de campo de Bronislaw Malinowsky nas Ilhas Trobriand), juntava-se a obrigação de retribuir «com juros». E, em nos casos observados, a obrigação de destruir.

Neste caso, o processo agonístico é alimentado pelo medo. Mas resulta igualmente de uma troca – os aplausos pela bem-aventurança – com laivos de potlacht (este, determinado por condicionantes exógenas àquele espaço-tempo, nomeadamente, o Gulag e a escalada da violência legitima do Estado).

Olga Tchatchavadze relata como isso se passou em Tbilissi: em 1938 foram detidos o presidente do Comité Executivo dos Sovietes da cidade, o seu substituto, todos os chefes de secção (onze), os seus adjuntos, todos os chefes de contabilidade e todos os directores dos serviços económicos. Outros foram designados. Decorreram dois meses. E de novo foram detidos (…) Em liberdade ficaram apenas os simples contabilistas, as dactilógrafas, as mulheres da limpeza e os paquetes (…).
Eis um pequeno quadro daqueles anos: está a decorrer (na região de Moscovo) a conferência distrital do Partido. É dirigida por um novo secretário, em substituição do recentemente detido. No fim da conferência é aprovada uma mensagem de fidelidade ao camarada Staline. Como se compreende, todos se põem de pé (…) Na pequena sala ressoam «tempestuosos aplausos que se transformam em ovação». Passam três, quatro, cinco minutos e são cada vez mais tempestuosos os aplausos redundando numa ovação. Mas já começam a doer as mãos, já se fatigam os braços levantados (…) Aquilo passa a ser estúpido até para aqueles que sinceramente admiram Staline. Entretanto, quem é o primeiro que se atreve a parar? Poderia fazê-lo o secretário da zona (…) Mas ele está ali há pouco tempo e encontra-se no lugar do recentemente detido, tendo ele próprio medo! Na verdade, na sala estão também de pé, aplaudindo, os membros da NKVD e eles observam quem é o primeiro que se atreve a parar!... E os aplausos na pequena e desconhecida sala, ignorada pelo Chefe, prolongam-se por seis minutos! Sete minutos! Oito minutos! Eles sucumbem! Estão todos perdidos! Não podem parar (…) Ainda no fundo da sala, no meio do aperto, se pode fazer um pouco de batota, aplaudir mais devagar, não tão forte, não tão furiosamente, mas que fazer no praesidium, à vista de todos!? O director da fábrica de papel local, uma personalidade forte, independente, faz parte do praesidium e compreende toda a falsidade, todo o beco sem saída da situação, mas aplaude! Decorre o nono minuto! O décimo! (…) É uma loucura geral! O director da fábrica de papel, no décimo-primeiro minuto, fingindo-se atarefado, deixa-se cair no seu lugar, no praesidium. E, oh! Maravilha! Esvaiu-se então o incontível, o indescritível entusiasmo geral? De repente, todos pararam no meio do mesmo aplauso e também à uma se sentaram. Estão salvos! O esquilo teve a ideia de sair da roda!... (…) Nessa mesma noite, o director da fábrica é preso (…) Mas, depois da assinatura do documento duzentos e seis, que conclui as investigações, o comissário-instrutor recorda-lhe: - nunca seja o primeiro a deixar de aplaudir! (…) Eis o que é a selecção, segundo Darwin. Eis o que é o cansaço, pela estupidez.”

Soljenitsine, Alexandr (1975): Arquipélago de Gulag, Lisboa, Livraria Bertrand, pp. 73 e 74.

4 comentários:

Anónimo disse...

então e os manetas faziam como?

Anónimo disse...

re: os manetas batiam palmas furiosamente com as bordas do cú

Anónimo disse...

" nunca seja o primeiro a deixar de aplaudir", achei interessante a frase.
Na sociedade hipócrita de hoje em dia a frase será "nunca seja o primeiro a deixar de sorrir amarelo" ou " nunca seja o primeiro a deixar de dar graxa ao chefe"

Eu gosto mais da frase "nunca venda os seus principios nem valores"

Anónimo disse...

...nem os dê de borla a quem não tem intenção de os respeitar... apetece dizer...