22 de abril de 2010

A tolerância de ponto pela visita do Papa

Num contexto de crescente desafeição religiosa no Ocidente, é compreensível este apelo à mobilização dos crentes nos dias em que o Papa Bento XVI visitar Portugal. E, particularmente nesta altura em que se sucedem as revelações de escândalos sexuais a envolverem sacerdotes com a conivência das autoridades eclesiásticas. Perante a onda de desconfiança, descrédito e traição, tanto o Papa como a Igreja precisam de banhos de multidão como de pão para a boca.

Contudo, apesar de agradar a católicos, ateus e muçulmanos, a tolerância de ponto anunciada pelo governo resulta de uma decisão insensata e eminentemente populista. Não me parece que ponha em causa o princípio da separação de poderes, como é recorrente na justiça. A maioria dos feriados nacionais é religiosa. Mas o tempo deu-lhes algo mais. Deu-lhe, por assim dizer, «carne cultural».

Mas a tolerância de ponto pela visita do «santo» padre é claramente uma medida que, calculamos, jamais se poderia colocar se o Dalai Lama resolvesse visitar o nosso tugúrio e acenar à chusma a partir do ramo de uma árvore. Nesse sentido, é o princípio da imparcialidade que é beliscado. Por conseguinte, não é argumento intelectualmente defensável a invocação da religião católica como a religião mais seguida pelo povo português; ou, como teve a veleidade de atirar a então Secretária de Estado da Educação, Mariana Cascais: «a religião católica é a religião oficial de Portugal». Não podendo romper com a história, o Estado português pode no entanto reescrevê-la e, muito longe desse ignorante anti-clericalismo, respeitar regras básicas do Estado enquanto entidade que organiza política e administrativamente um dado território.

Mas, como foi dito, a Igreja agradece a boa vontade do governo português. Vai-lhe saber bem ter os fiéis em histeria e êxtase à passagem do Papa e esquecer-se por breves momentos dos escândalos sexuais e dos doentes que protege no seu poderoso reduto. Terá certamente muitos peregrinos e crentes e beatos e santos agitando bandeirinhas nas estradas, viadutos, praças, caminhos e vielas deste país. Muitos, de dentes estragados, andrajosos e esfolados, com os estômagos dilatados pela fome, colados ao chão, fazendo mercê à santa opulência que lhes passa diante dos olhos.

Desde logo, na Santa Missa a realizar no Terreiro do Paço, cuja homilia incluirá uma mensagem comemorativa do quinquagésimo aniversário do Santuário de Cristo Rei, em Almada. Porém, estando ali tão perto do Rossio e beneficiando de um tão generoso banho de multidão, por que não rumar umas centenas de metros a norte e, de frente para a Igreja de S. Domingos, recordar um outro banho, o de sangue, que ali teve lugar em 1506 instigado por frades dominicanos?

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