17 de agosto de 2010

Uma reforma penal gentil

Ainda que a não criminalização de burlões e ladrões que restituam o objecto da sua acção dependa sempre da anuência das vítimas, parece claro que a tentação de passar a perna a alguém pode ser embaraçosa para o legislador e para as forças policiais. Em particular, sempre que alguém pouco preocupado com a honra e imagem social tente a infracção, consciente de que, sendo caçado, pode sempre restituir o objecto de apropriação ilegal:
- Se der, dá! Se não der, restitui-se...

Mas, por outro lado, caso as partes se achem numa relação assimétrica e o infractor seja financeiramente poderoso (e a sua imagem social seja motivo de preocupação), quais os limites para que o reparo exigido pela vítima a converta numa espécie de chantagista protegida pelo sistema judicial (desde que abaixo do quadro de indemnizações previstas)?
- Amigo, para que eu o perdoe e não bata com os costados na prisão, exijo a laranja que me roubou da prateleira, o seu melhor par de botas, uma noite com a sua mulher [e se calhar aí até lhe faço um favor] e aí uns cinquenta mil euros!

Ao contrário, se for o infractor a parte em desvantagem e já tiver consumido a laranja, é possível que a justiça não seja negociada. Mas o comerciante também nunca mais põe os olhos na linda laranja.

Finalmente, os encargos humanos e financeiros com a investigação criminal mantêm-se. A não ser que a vítima seja um filantropo ou simplesmente idealista e se solidarize com o Estado exijindo do condenado um reparo por todas as despesas que o seu acto provocou:
- Ora bem... para além da laranja, quero também que pague todas as despesas que a polícia teve para o apanhar. Pouco realizável...

Em suma, se a propriedade já era elemento fundamental na configuração de normas legais (e sociais), ganha agora uma importância extraordinária, relegando para segundo plano a condenação moral de actos considerados ilícitos pelas sociedades.

Ficamos com a sanção social que, convenhamos, é hoje fortemente afectada pelo status resultante da posse e ostentação de bens materiais caros: o homem pode ser o maior trafulha mas é um gentleman... ou homem-gentil, na «gíria»...

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