4 de março de 2011

A gaveta, não lugar do exílio

Há dias, enquanto lia um artigo de Douglas Mansur da Silva, intitulado "A oposição no exílio e a memória da resistência ao Estado Novo em São Paulo", a minha atenção não pôde deixar de captar duas ideias desenvolvidas por este antropólogo brasileiro. Em primeiro lugar, o paradoxo de a esquerda portuguesa (em torno de um jornal de intervenção, o «Portugal Democrático») se movimentar livremente no Brasil militar, ao passo que a esquerda brasileira era reprimida. E isto, fundamentalmente, devido ao posicionamento expectante de Brasilia relativamente à questão colonial e à natural simpatia pelos movimentos libertadores nacionalistas.

A outra ideia (que aparentemente pouco tem que ver com a seguinte) assenta na construção metafórica do exílio antes de o ser, como a pescada. Efectivamente, «para muitos que militaram no campo da oposição, o exílio tem início, portanto, em Portugal, através do contacto com as práticas de oposição, por intermédio da participação nos movimentos que emergiram no decorrer e no pós-guerra (...) ou por relações próximas com intelectuais contrários ao regime, produzindo um distanciamento objectivo e subjectivo frente às ideias oficiais».

O que Douglas da Silva pretende dizer é que estes indivíduos (eventualmente a generalidade), desenvolveram disposições, no sentido dado por Bernard Lahire, que estruturam toda a sua acção e engavetam defensivamente as suas ideias à circunscrição craniana e a um par de círculos forçosamente íntimos porque a sanção prevista facilmente transformaria o exílio psicológico numa experiência repressiva.

Nestes termos, incomodados e perseguidos, estes indivíduos passam por uma experiência de exílio psicológico e intelectual, antes mesmo de tomarem a derradeira decisão de materializá-lo. E voltar a reunir corpo e mente numa mesma unidade indivisível. Se pudéssemos inverter estes dois contextos e conjugá-los com os dois tipos de exílio, poderíamos chegar à condição do exilado mental num mundo colorido. Ou seja, um Mário de Sá Carneiro, um Baudelaire ou outro qualquer típico insatisfeito, transformado num exilado livre, confortavelmente instalado e até, formalmente respeitado. 

Esta insatisfação asfixiante num mundo unidimensional, medíocre rasteiro contra o qual não mobilização suficiente de forças oposicionistas, remete o espírito para a gaveta, antes mesmo do corpo se lhe juntar. A primeira alternativa seria o ostracismo da dignidade e o conluio com a perspectiva ignorante da ralé porque é sempre em «diálogo» com esta que o indivíduo se exila, ainda que metaforicamente. A segunda, sair, reificando o adágio popular «quem está mal, muda-se».

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