9 de março de 2013

Governo de Esquerda

Nesta altura, quase dois anos volvidos após a intervenção de um triunvirato que hoje, sabe-se, é fortemente condicionado - senão manipulado - pelo gigante da banca mundial cujos escrúpulos ficam muito a dever à bondade, já se mostra escusado o mínimo esforço de demonstração do falhanço social destas políticas draconianas defendidas de forma canina por governos insensíveis ao funcionamento do sistema democrático que os elegeu. Insensíveis, também, aos equilíbrios postulados por, não um mas dois hemisférios.

Falhanço social porquê? Porque, evidentemente e em última instância, é para as pessoas que foram desenvolvidos modelos económicos, sistemas eleitorais, sistemas políticos, tecnologia e tantas outras realizações civilizacionais. E porquê a insistência? Porque há dois aspectos fundamentais que parecem não repudiar os nossos estultos governantes: a subalternizarão das pessoas à economia e a outras lógicas ameaçadoramente obscuras; o sacrifício da democracia à estabilidade político-económica e à canonização do seu Senhor, aqui simbolizado na ingerência política e financeira externas. A relação é, aqui, de dominação no sentido weberiano, herrshaft. Por conseguinte, a instrumentalização da democracia que aqui é operada, vemo-la na nomeação por toda a Europa de altos quadros ligados à Goldman Sachs - Draghi, Monti e até essa sumidade intelectual que responde pelo nome de António Borges - representando o passo final da colonização do político pelo económico, desde o nosso conterrâneo Boaventura Sousa Santos, passando por David Held, Herbert Marcuse ou Tarso Genro.

Os efeitos estão à vista: desmantelamento da produção e das funções sociais e redistributivas do Estado, aumento do défice das contas públicas, agravamento fiscal sobre os rendimentos de trabalhadores mas não de capitalistas, desemprego, pobreza. Numa frase, aumento acelerado da dependência económica e social de um país em relação aos seus «aliados». E a enormidade de consequências que daí advirão. 

A Europa está povoada por governos capturados por uma convicção férrea na manutenção do status quo, alimentando fantasmas legitimadores do combate à peste e aos infiéis que a acolhiam (fazendo lembrar as cruzadas como absoluta necessidade de iluminação interior de toda a Cristandade, aliás, Humanidade), agora na defesa cega tanto no bom como no mau do sistema capitalista. A todo o custo, bem entendido. De tal forma que vemos um governo como o português, cuja ligação à ideologia liberal é tão longínqua quanto a reconciliação das duas coreias, carregando nas receitas fiscais e amordaçando a iniciativa privada. Não é só má preparação. A ordem é destruir, não é construir postos de trabalho; a ordem é desmantelar o Estado Social, não é reformá-lo com dignidade e com respeito por direitos, liberdades e garantias; a ordem é espoliar a população, não é qualificá-la ou tê-la saudável; a ordem é servir Portugal de bandeja, não é assumir Portugal como um país autónomo, digno e com um rasto histórico precursor da Humanidade em muitos momentos e que nos devia engrandecer quando pensamos no estrangeiro e no virtuosismo dos outros...

As manifestações cívicas que têm vindo a ser realizadas, demonstrativas da indignação geral de pessoas que, ao longo dos anos, deram o seu voto de confiança a sucessivos governos e que, agora, se vêem traídas com a triste mas não ingénua tirada «andámos a viver acima das nossas possibilidades», têm o eco possível num governo autista, refugiado numa legitimidade política hoje não maior do que a legitimidade eleitoral de Mário Monti. A mobilização cívica, cimento da democracia e neste contexto elevada a poder instituidor, na senda de Castoriadis é, em suma, desvalorizada e enxovalhada por um conjunto de indivíduos cuja imbecilidade proverbial tem talvez o seu expoente no leviano, trocista e defeituoso trautear da «Grândola Vila Morena» do ministro Relvas, figura proeminente do desmantelamento democrático.

Porque os tempos o exigem e porque o desafio tem contornos paradigmáticos, não se tolera outra atitude à esquerda portuguesa que não passe pela seriedade e transparência da afirmação inequívoca sobre qual o objecto da sua luta. E este, caros partidos, são as pessoas e nós próprios! Doravante, à esquerda não são toleráveis os oportunos fait-divers, os sectarismos militantes ou as trajectórias políticas titubeantes, nefastas para qualquer negociação. Sem prejuízo para as matrizes ideológicas - e neste campo, é surpreendente como a convergência poderia ser tão simples - estes partidos têm o desafio de pensar primeiro nas pessoas.

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