12 de dezembro de 2004

os deuses também já foram homens

CRÓNICAS DE LECCE
II PARTE

Tarde

Apesar de insatisfatoriamente dormida, a noite não nos presenteou com mais sobressaltos, a espera e a crença numa qualquer Providencia Divina eram o nosso trunfo e resignados, dormimos o menos-mal que pudemos, sufocados pela abobadaria gordurosa da cozinha mesmo rente aos nossos narizes.

Despertei com os primeiros raios de sol, tomei o meu merecido banho e sem proceder a uma inspecção minuciosa ao quarto numa acção conjunta com a Protecção Civil e o Instituto de Paredes de Portugal (uma fusão do Instituto de Estradas de Portugal com o Instituto da Apanha do Tomate e Instituto da Promoção da Banha de Porco na Escandinávia), tomei o caminho do edifício da "Provincia di Lecce" (onde uns senhores muito gentis me deixam utilizar o computador para escrever estes delírios), na esperança de que o decorrer do dia e o aumento da temperatura concluíssem o "chamamento"...

Quando o sol já ia alto e o estômago vazio, encontrei-me com o meu co-inquilino antes do repasto, saboreando com alguma descontracção os acontecimentos dessa noite. Todavia, pressagiando o pior – ou seja, o impensável – decidimos arrastar os nossos delicados e já fragilizados corpos a casa, com o intuito de verificar (in loco) se o desavergonhado intruso tinha finalmente despregado da cândida parede aquelas patas esponjosas, qual velcro irresistível que cola alguns a políticos ou a algo do género...

O outrora acolhedor quarto revelava-se suspenso num tranquilidade soturna, numa paz podre, quebrada a espaços pelas dezenas de moscas que entretanto aproveitaram o convite da janela entreaberta e rodopiavam numa valsa ascendentemente esquizoide. É assim, uns saem derrotados e outros entram vitoriosos, é cíclica a dança das cadeiras... O quarto que na sua longa vida já tinha assistido a muitas revoluções, a muitas alegrias, a muitas perdas, mostrava-se agora ressequido, cansado e embriagado de tristeza. Mas porque razão? Entretanto esqueci-me de regar a hortelã que tenho num vaso.

[após regar a hortelã] Receoso mas destemido, invocando a bravura de heróis de outros tempos, Alexandre Nunes, que envergava um elmo de latão decorado nos rebordos com esmeraldas, uma fina cota de malha de terracota, sabre de Jedi, comprado na "Casa Milho" por ocasião de um Carnaval, e montando o seu fulgurante corcel branco, avançou decididamente para o armário.

Trémulo, colou a face direita à parede e apoiou o nariz na parte anterior do guarda-roupa, conseguindo desta forma circense porque acrobática, o melhor ângulo de visão, munido com a mais aparatosa tecnologia em termos de auxiliares de visão nocturna: uma pequena mas corajosa lanterna de plástico comprada por 50 cêntimos na loja das 1000 liras, em Bari (na verdade estou a falar de Bari, capital do crime organizado, da delinquência generalizada e comércio legal de órgãos humanos. Não é qualquer um que de lá sai com vida, apenas The Choosen One).
Foi no momento em que «clicou» pela terceira vez o sistema ultra-sofisticado da lanterna que o breu se desvaneceu dando lugar à clarificação de formas que nos eram já familiares; por sua vez, ao já familiar grito de repugnância – mesclado com ódio visceral – correspondeu um poderoso duplo salto mortal encarpado atrás. O escabroso e pestilento ser continuava a profanar a nossa parede.

Não, definitivamente não era uma osga qualquer. Esta era de uma estirpe conhecida trazida pelos ventos de leste. Tardiamente a noticia havia sido difundida em primeira-mão pelo amigo Bush depois de a ter visto na CNN. Era na verdade um comando operacional altamente especializado na "base terrorista" de Massive Atack, como lhe chamam. Este novo dado confere uma nova dimensão aos factos.
Agora sim, éramos investidos da mais profunda convicção e da autoridade conferida por Deus para representarmos as Forças do Bem na luta contra o Mal. Ah pois… Obrigado, bondoso aliado Bush por nos mostrares o caminho da salvação. Além disso, é evidente que isto era uma declaração de guerra, pior, uma desprezível acção de terrorismo para sabotar a minha tarde descansada a comer biscoitos e a controlar umas migalhas às formiguinhas que se atrevem no meu quarto.

Ponto final, vou definitivamente deixar de ser assinante da National Geographic Magazine e o Henrique (sobrinho) que me perdoe, mas lá em casa nunca mais há BBC vida selvagem nem seja o que for relacionado com tipos que pensam os animais à sua imagem e lhes dão beijos e cenas dessas. A única explicação para evitar o total descrédito deles seria eu ter perdido algum episódio importante. Agora já é tarde, there’s no way back.

A histeria regressou e apoderou-se com incomensurável tormento destas duas pobres criaturas indefesas, impotentes e perdidas, irremediavelmente perdidas. Os americanos nunca cá estarão a tempo de evitar uma catástrofe. Porem, num acesso de loucura inconsequente, virámos o quarto às avessas, gritando desesperadamente na ingénua tentativa de enxotar o animal, de fazê-lo tornar a si. O desalento ganhava terreno mas a ideia da Solução Final assumia contornos cada vez mais reais. "Se não podes vencê-los, junta-te a eles!", dizia eu de mim para nós. Mas isso era absolutamente impensável. Absolutamente irrealizável. Numa palavra, abominável. Juntar-me? Os israelitas não se juntam aos palestinianos, nem se dividem, vou-me eu juntar à vileza corporizada num réptil? Jamais! Xiiii, já estou a pensar, tornemos ao impensável...

Nisto soou a campainha da porta! O alerta terá feito sentir-se, interroguei-me. Afinal a nossa súplica enviada por trompas ancestrais cuja memória se perde na idade do tempo, parecia ter chegado aos ouvidos dos nossos aliados.
Afinal sempre tínhamos a Sigourney Weaver do nosso lado. Cansada de viver com Gorilas na bruma e exterminar Aliens, tinha agora a oportunidade de exterminar a grande osga salentina, predador temível, forjado na arca de Canhim (uma secção dissidente da arca de Noé que não reconhecia legitimidade ao velho marinheiro).

A esperança renasceu, o sol voltou a brilhar, os passarinhos a chilrear e o vizinho da frente a berrar com a mulher (Lucia), quando do vão das escadas surgiu a potente amazonas de traço crioulo e determinação saxónica, a Sónia, que num tom determinado, autoritário e sedento demandou: "onde está o bicho?". Fazia-se acompanhar do seu velho e fiel escudeiro, Nuno, criatura exemplar nas artes pirotécnicas dada a destreza com que acendia nervosamente um par de cigarros com outro par de cigarros. Figura sinistra e impassível.
Não temos Goebbels (perdoem-me a imprecisão histórica), Sharon ou Pol Pot mas temos a Sónia, pensei. Afinal, tem a frieza do Schwazeneger no seu melhor em Exterminador Implacavel I, a força de Hulk, o know how da CIA e fundamental, não se demora como o Manoel de Oliveira.

Num ápice meteu mãos à obra e erguendo a sua demolidora maça, lançou-se na perseguição do temível e, nas novas condições, assustado inimigo. Apesar de havermos contratado alguns batedores autóctones, todos eles sem excepção se recusaram a prosseguir nesta extenuante empresa. Com efeito, foi com alguma dificuldade que lhe encontrámos o trilho, localizando assim o covil pestilento, perdido nas profundezas do alçado da cama.

Num movimento, num só movimento incrivelmente engendrado e delicioso pela sua perfeição e sincronia, arrastei a cama e o ardiloso animal viu-se irremediavelmente pequeno e evidentemente sem mais manhas. Nessa fracção de momento que passou a representar a negação da liberdade e da existência do infame, a Sónia desferiu-lhe um certeiro e violentíssimo golpe, desfigurando-lhe para sempre aquele perfil sanguinário que antes tão orgulhosamente ostentava.

Nos momentos que se seguiram, o Alexandre Nunes certificava-se, imbuído de doentia felicidade, da concretização da promessa que já antes lhe destinara. Nuno permanecia impassível com uma vassoura na mão enquanto acendia um par de cigarros com outro par, soltando risotas em delírio compulsivo. Durante estes inebriantes instantes estava já eu extenuado de náuseas, prestes a vacilar intestinalmente num misto de satisfação e horror.

Homenageados os valorosos guerreiros, procedeu-se à recolha dos destroços viscosos, entranhados na parede. Contudo num acesso de reacção, a cauda decepada eximia ainda intenção maligna. Não cessava de se debater, tentando porventura reunir o resto do corpo através de alguma alquimia desconhecida das Forças do Bem. Zás, novo e rude golpe.
Finalmente imobilizada, a maléfica criatura viu a sua aventura terminar no fundo de um vulgar saco de plástico e enviado para um contentor (perto do Hotel Risorgimento).

Não se contentando com um pouco de terra quis o mundo... Felizmente há quem ponha ordem nas coisas. Neste momento, não dispomos ainda de informação sobre se o corpo foi alguma vez reclamado. Agora é que os activistas dos direitos dos animais vão mesmo cair em cima de mim.

Moral da história: Não basta seres aprazível para que gostem de ti

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