CRÓNICAS DE LECCE
I PARTE
Manhã
A noite passada estava serena e bela, resolvemos sair de casa apenas para tomar o tradicional café, convictos que brevemente o tranquilo leito nos consolaria e apaziguaria o cansaço e desidratação sofrida há duas noites, em consequência do jantar de aniversário de um dos nossos, o Nuno. Na ressaca da folia, nenhum lugar nos parecia tão desejado como a "Casa di Pipo", lugar mítico que vai reconquistando a grandeza de outras épocas, pelo menos até 31 de Maio, altura prevista para o nosso retorno à grande pátria lusitana.
De resto, achados em casa, enquanto o Alexandre Nunes devorava na cozinha qualquer coisa que lhe forrasse o estômago da laringe até ao duodeno, eu, por meu turno preparava-me para uns exercícios de manutenção física, ao som de "ne me quitte pas" do Brel, apelos que o meu corpo tem feito insistentemente à cabeça. Isto para não acordar cantarolando «o corpo é que paga» do Variações.
Foi nesse instante que, sentado na cama avistei a Besta! Com "666" tatuado nos membros anteriores, aquelas patinhas coladas à parede como ventosas, o imenso visco que cobria a epiderme esverdeada e repugnante, um gorgolejar angustiante seguido de silvos cruéis que pareciam ecoar por todo o Salento. A esta altura já era assim que o imaginava a avançar para mim, com a longa cauda em movimentos hipnóticos e circulares, iniciando as hostilidades. Era um verme demoníaco, era...
... uma imensa Osga! Não, não era a "Amiga Osga", era uma osga enorme, a maior que vi até hoje nas quatro partidas do mundo, um ser suficientemente vil e asqueroso para entrar num filme do Almodôvar e enorme, digno de uma intensa reportagem da National Geographic Society ou da BBC wild life. Soltei um grito de horror.
Ao temeroso ruído respondeu o Alexandre da cozinha com vinte réplicas, dando de seguida entrada no quarto e deparando-se com o invasor exclama: uma… arghhhh.
Seguiram-se breves momentos de tentativas de avaliação da situação, continuamente interrompidas por trémulos olhares furtivos ao imenso réptil, que entretanto crescera em tamanho aí uns sete dedos, no mínimo. Pensámos em várias soluções, ponderando naturalmente a Solução Final. Temos que acompanhar as tendências... apesar de não dominarmos a técnica, faltando-nos know how; talvez os partidários do velho General obeso novamente no activo, nos possam dar umas lições, mas não há tempo para ir a Televive e regressar.
A questão central que se coloca nessa aproximação, é que nem eu nem o meu velho amigo de infância pertencemos à casta do povo eleito, embora esta circunstância nos venha servir de lição e iniciaremos brevemente as diligências necessárias para virmos a ser seleccionados na próxima entrevista, ou se assim o mister o entender.
Apesar de o Alexandre Nunes se mostrar inicialmente disposto a encetar uma valorosa acção de extermínio, logo cedeu às minhas lamúrias ao imaginar um cenário de destruição, pedaços de corpos esventrados a apodrecer na parede e esguichos de langonha por toda a parte. Pior, o contra-ataque impiedoso. O cenário não era encorajador e sabe-se lá se ainda por cima não vinha a gorda mãe Alien em seu auxílio. E nós não tínhamos a Sigourney Weaver, irremediavelmente condenados à desvantagem. Posta de parte essa hipótese, optámos por convidar o hóspede a sair. Não só convidámos como acabámos a implorar, lembrando-lhe o grande mundo que o esperava para lá do nosso quarto e a amena noite envolvente. Dele, nem uma palavra, mostrando-se irredutível.
Tomámos duas vassouras nas mãos e entregámo-nos àquela que ficou conhecida como a "Missão Repatriamento". Mas a repugnância era tal que parecia transferir-se para o cabo da vassoura no caso extremo e não planeado de eventualmente lhe tocarmos com uma das barbas. Tentámos por todos os meios incitá-lo à obediência, mas o bicho, para além de execrável é teimoso, senhor da maior arrogância nunca antes vista.
De cada vez que o seu corpo abandonava a inércia e desajeitadamente veloz percorria o tecto da nossa amada casa, nós éramos invadidos pelo terror, colocando-nos de imediato a salvo na cozinha ou rodando espavoridos em torno de nós próprios, soltando guinchos resgatados dos confins dos nossos medos. Um espectáculo extra para os nossos vizinhos, que naquelas horas mantiveram-se muito calmos. Não é normal, dado o calibre da vizinhança.
Com efeito, nem o vizinho da frente estava a berrar com a mulher (Lúcia), nem o de baixo a berrar com a sua mãe – este é o "americano" cinquentão que "habla espanol" convicto que assim melhor se entende connosco, filho de uma ex-emigrante nos US, sempre a queixar-se da falta de "cultura dos italianos"; o que elogia permanentemente os atributos das "chicas mexicanas" (e o preço), comparando obsessiva e delirantemente o Vaticano com Belzebu e apenas aguardando ardentemente que a sua querida mãe parta, para que refaça as malas e regresse à América. Provavelmente para a prisão. E finalmente, nem o nosso senhorio estava a arfar tremulamente na nuca do seu «colega» francês. Pelo menos que se ouvisse…
O Alexandre Nunes alertava insistentemente em como não estávamos preparados para enfrentar uma situação destas. De facto, nem tínhamos trazido o kit de sobrevivência nem na cidade são ministrados cursos intensivos de "primeiras expulsões". Vou propor isto à Secretaria de Estado da Educação e depois podemos valorizar esta mais valia, projectando-a internacionalmente através do Instituto Camões ou da Fundação Oriente. São estas marcas distintivas que definem a excepcionalidade do povo português, reconhecida pelas quatro partidas do mundo.
Eu, Alexandre Manuel, o outro (que "conjunção bizarra", não é?), redarguia-lhe que talvez os Carabinieri pudessem vir em nosso auxílio. Certamente teriam pontaria para eliminar o bicho e estariam preparados para lidar com situações extremas de terrorismo a este nível. Se em Génova acertaram a dois metros, em cheio no petiz que se passeava com um extintor de incêndios na mão, também aqui não haviam de falhar a besta. A menos que as suas próprias munições sentissem tanta repugnância como nós e no último instante desviassem a trajectória... Mas por outro lado, e se os Carabinieri se excitassem? Ás tantas, ficavam com os dedos quentes e havia parodia connosco, acabando por nos talhar e repartir o remanescente pelos contentores de lixo, cozinhando as nossas mioleiras em molho de tomate para o Presidente del Consiglio, Benito Berlusconi, as comer ao pequeno-almoço.
As horas avançavam e os resultados não apareciam. Pelo contrário, o feroz animal, apoiado pelo mais sofisticado sistema de orientação por GPS, iniciou novo itinerário, na direcção do guarda-roupa. Foi nessa altura que o Alexandre Nunes entrou em colapso; colapsou totalmente quando eu, numa derradeira tentativa de inverter a marcha do bicho, piorei a situação e este se afundou irremediavelmente detrás do guarda-roupa, que não dispõe de compartimentos estanques…
Já se falava em veneno, em ninho, em ovos a incubar nos bolsos do meu casaco ou nas meias dele, já se falava em abandonar Lecce, em ameaças nucleares, aumentar o IVA, extinguir os Bombeiros Voluntários, nas previsões do Bandarra. A coisa tomou proporções inimagináveis e por pouco não imaginei o Alexandre Nunes a queimar todas as suas roupas, no limite, a casa.
Após uma dura negociação, salpicada pela experiência de alguns casos de osgas portuguesas (apesar de menos hostis) que me entraram antes em casa (reforçou a minha autoridade no assunto), consegui convencer o Alexandre Nunes a não permanecer em vigília pelo que restava da noite. Argumentei que, por terem sangue frio (desconfio que nem sequer terão sangue, apenas aquele composto viscoso), as osgas necessitam de bastante calor, por isso passam horas a fio ao sol e durante a noite inflectem para dentro das casas, para além de que no Inverno ressonam, o que em dialecto português significa hibernar. Assim, bastaria deixarmos que a natureza prosseguisse o seu curso e com o sol do dia seguinte, o animal seguiria a sua vida à procura de suculentos insectos no telhado ou nas varandas das imediações. Bom, pelo menos é o que os gajos da National Geographic Society dizem nos documentários, espero que não me tenham aldrabado anos a fio, caso contrário o Alexandre nunca me perdoaria.
Selámos a porta do quarto e barricámo-nos no quarto da cozinha, onde todos os ruídos provenientes do quarto pareciam guturais...
Prevaleceu a natureza sobre a cultura. Ele venceu!
De resto, achados em casa, enquanto o Alexandre Nunes devorava na cozinha qualquer coisa que lhe forrasse o estômago da laringe até ao duodeno, eu, por meu turno preparava-me para uns exercícios de manutenção física, ao som de "ne me quitte pas" do Brel, apelos que o meu corpo tem feito insistentemente à cabeça. Isto para não acordar cantarolando «o corpo é que paga» do Variações.
Foi nesse instante que, sentado na cama avistei a Besta! Com "666" tatuado nos membros anteriores, aquelas patinhas coladas à parede como ventosas, o imenso visco que cobria a epiderme esverdeada e repugnante, um gorgolejar angustiante seguido de silvos cruéis que pareciam ecoar por todo o Salento. A esta altura já era assim que o imaginava a avançar para mim, com a longa cauda em movimentos hipnóticos e circulares, iniciando as hostilidades. Era um verme demoníaco, era...
... uma imensa Osga! Não, não era a "Amiga Osga", era uma osga enorme, a maior que vi até hoje nas quatro partidas do mundo, um ser suficientemente vil e asqueroso para entrar num filme do Almodôvar e enorme, digno de uma intensa reportagem da National Geographic Society ou da BBC wild life. Soltei um grito de horror.
Ao temeroso ruído respondeu o Alexandre da cozinha com vinte réplicas, dando de seguida entrada no quarto e deparando-se com o invasor exclama: uma… arghhhh.
Seguiram-se breves momentos de tentativas de avaliação da situação, continuamente interrompidas por trémulos olhares furtivos ao imenso réptil, que entretanto crescera em tamanho aí uns sete dedos, no mínimo. Pensámos em várias soluções, ponderando naturalmente a Solução Final. Temos que acompanhar as tendências... apesar de não dominarmos a técnica, faltando-nos know how; talvez os partidários do velho General obeso novamente no activo, nos possam dar umas lições, mas não há tempo para ir a Televive e regressar.
A questão central que se coloca nessa aproximação, é que nem eu nem o meu velho amigo de infância pertencemos à casta do povo eleito, embora esta circunstância nos venha servir de lição e iniciaremos brevemente as diligências necessárias para virmos a ser seleccionados na próxima entrevista, ou se assim o mister o entender.
Apesar de o Alexandre Nunes se mostrar inicialmente disposto a encetar uma valorosa acção de extermínio, logo cedeu às minhas lamúrias ao imaginar um cenário de destruição, pedaços de corpos esventrados a apodrecer na parede e esguichos de langonha por toda a parte. Pior, o contra-ataque impiedoso. O cenário não era encorajador e sabe-se lá se ainda por cima não vinha a gorda mãe Alien em seu auxílio. E nós não tínhamos a Sigourney Weaver, irremediavelmente condenados à desvantagem. Posta de parte essa hipótese, optámos por convidar o hóspede a sair. Não só convidámos como acabámos a implorar, lembrando-lhe o grande mundo que o esperava para lá do nosso quarto e a amena noite envolvente. Dele, nem uma palavra, mostrando-se irredutível.
Tomámos duas vassouras nas mãos e entregámo-nos àquela que ficou conhecida como a "Missão Repatriamento". Mas a repugnância era tal que parecia transferir-se para o cabo da vassoura no caso extremo e não planeado de eventualmente lhe tocarmos com uma das barbas. Tentámos por todos os meios incitá-lo à obediência, mas o bicho, para além de execrável é teimoso, senhor da maior arrogância nunca antes vista.
De cada vez que o seu corpo abandonava a inércia e desajeitadamente veloz percorria o tecto da nossa amada casa, nós éramos invadidos pelo terror, colocando-nos de imediato a salvo na cozinha ou rodando espavoridos em torno de nós próprios, soltando guinchos resgatados dos confins dos nossos medos. Um espectáculo extra para os nossos vizinhos, que naquelas horas mantiveram-se muito calmos. Não é normal, dado o calibre da vizinhança.
Com efeito, nem o vizinho da frente estava a berrar com a mulher (Lúcia), nem o de baixo a berrar com a sua mãe – este é o "americano" cinquentão que "habla espanol" convicto que assim melhor se entende connosco, filho de uma ex-emigrante nos US, sempre a queixar-se da falta de "cultura dos italianos"; o que elogia permanentemente os atributos das "chicas mexicanas" (e o preço), comparando obsessiva e delirantemente o Vaticano com Belzebu e apenas aguardando ardentemente que a sua querida mãe parta, para que refaça as malas e regresse à América. Provavelmente para a prisão. E finalmente, nem o nosso senhorio estava a arfar tremulamente na nuca do seu «colega» francês. Pelo menos que se ouvisse…
O Alexandre Nunes alertava insistentemente em como não estávamos preparados para enfrentar uma situação destas. De facto, nem tínhamos trazido o kit de sobrevivência nem na cidade são ministrados cursos intensivos de "primeiras expulsões". Vou propor isto à Secretaria de Estado da Educação e depois podemos valorizar esta mais valia, projectando-a internacionalmente através do Instituto Camões ou da Fundação Oriente. São estas marcas distintivas que definem a excepcionalidade do povo português, reconhecida pelas quatro partidas do mundo.
Eu, Alexandre Manuel, o outro (que "conjunção bizarra", não é?), redarguia-lhe que talvez os Carabinieri pudessem vir em nosso auxílio. Certamente teriam pontaria para eliminar o bicho e estariam preparados para lidar com situações extremas de terrorismo a este nível. Se em Génova acertaram a dois metros, em cheio no petiz que se passeava com um extintor de incêndios na mão, também aqui não haviam de falhar a besta. A menos que as suas próprias munições sentissem tanta repugnância como nós e no último instante desviassem a trajectória... Mas por outro lado, e se os Carabinieri se excitassem? Ás tantas, ficavam com os dedos quentes e havia parodia connosco, acabando por nos talhar e repartir o remanescente pelos contentores de lixo, cozinhando as nossas mioleiras em molho de tomate para o Presidente del Consiglio, Benito Berlusconi, as comer ao pequeno-almoço.
As horas avançavam e os resultados não apareciam. Pelo contrário, o feroz animal, apoiado pelo mais sofisticado sistema de orientação por GPS, iniciou novo itinerário, na direcção do guarda-roupa. Foi nessa altura que o Alexandre Nunes entrou em colapso; colapsou totalmente quando eu, numa derradeira tentativa de inverter a marcha do bicho, piorei a situação e este se afundou irremediavelmente detrás do guarda-roupa, que não dispõe de compartimentos estanques…
Já se falava em veneno, em ninho, em ovos a incubar nos bolsos do meu casaco ou nas meias dele, já se falava em abandonar Lecce, em ameaças nucleares, aumentar o IVA, extinguir os Bombeiros Voluntários, nas previsões do Bandarra. A coisa tomou proporções inimagináveis e por pouco não imaginei o Alexandre Nunes a queimar todas as suas roupas, no limite, a casa.
Após uma dura negociação, salpicada pela experiência de alguns casos de osgas portuguesas (apesar de menos hostis) que me entraram antes em casa (reforçou a minha autoridade no assunto), consegui convencer o Alexandre Nunes a não permanecer em vigília pelo que restava da noite. Argumentei que, por terem sangue frio (desconfio que nem sequer terão sangue, apenas aquele composto viscoso), as osgas necessitam de bastante calor, por isso passam horas a fio ao sol e durante a noite inflectem para dentro das casas, para além de que no Inverno ressonam, o que em dialecto português significa hibernar. Assim, bastaria deixarmos que a natureza prosseguisse o seu curso e com o sol do dia seguinte, o animal seguiria a sua vida à procura de suculentos insectos no telhado ou nas varandas das imediações. Bom, pelo menos é o que os gajos da National Geographic Society dizem nos documentários, espero que não me tenham aldrabado anos a fio, caso contrário o Alexandre nunca me perdoaria.
Selámos a porta do quarto e barricámo-nos no quarto da cozinha, onde todos os ruídos provenientes do quarto pareciam guturais...
Prevaleceu a natureza sobre a cultura. Ele venceu!
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