17 de janeiro de 2005

listas e círculos uninominais: a salvação

No Público de ontem, vem António Barreto defender uma vez mais a substituição dos actuais círculos plurinominais pelos uninominais. Com toda a consideração e simpatia que me merece este destacado opinion maker e ex-governante, desconfio no entanto, de tanta agitação em torno deste tema.
A haver pacto de regime entre PS e PSD (quase uma exigência de Sampaio), cheira-me que começará por aqui; mesmo antes de qualquer assunto de menor relevância, como por exemplo, devolver ao país alguma estabilidade económica ou prestar melhores cuidados de saúde e educação.

O artigo de opinião até podia não ter mácula, dada a erudição do autor, porém há uma questão que me inquieta: a convicção com que António Barreto sustenta os seus argumentos e lhes confere o estatuto de verdades inquestionáveis, fazendo profissão de fé como não fosse ele um homem das ciências sociais.

Diz ele que a criação de «círculos uninominais, a proibição de substituições de deputados eleitos e a possibilidade de candidaturas independentes», garantem maior liberdade individual ao eleito, libertam-no dos grilhões partidários e responsabilizam-no directamente perante o seu eleitorado. Tudo certo! Ou quase...

A questão que se levanta é a seguinte: estas condições só são exclusivamente garantidas com os círculos uninominais? As dúvidas assenhoram-se de mim, rompendo toda a ingenuidade do infans. Não que a sua proposição seja enviesada. Mas, essas condições não podem ser garantidas de igual forma em círculos plurinominais?

O acto eleitoral é por si só, uma espécie de julgamento popular a posteriori, que os eleitores têm ao seu dispor, ou seja, as eleições são a forma de sancionar ou gratificar políticamente um partido, um candidato ou um movimento de cidadãos.
Em tese, os políticos e os partidos são responsabilizados pelos seus actos de governação e diante do povo, unicamente mediante o exercício eleitoral. Isto é, salvo [raras] excepções que acredito existirem algures na história, são responsabilizados politicamente.

Nesse caso, o que poderá mudar uma candidatura independente? Constituem-se milícias populares de vigilância, vão a casa do deputado José Bexiga, que não se terá portado lá muito bem, pregam-lhe as orelhas com pregos a uma tábua e seviciam-no à chicotada, punindo-o por nele terem votado? Claro que não! Isso é tão atroz e absurdo para militantes de um partido como para um independente. O sistema jurídico está preparado para julgar pessoas, sejam do partido ou não (na China, na URSS é que não era bem assim…). O sistema político está por outro lado preparado para a sanção política que o povo tem ao seu dispor.

Poder-me-ão dizer que os partidos são ninhos disto e daquilo, e ali se gizam conluios, gozam-se favores, etc., etc. Tudo bem, mas isso é outra história que nada tem que ver com a responsabilização de que nos fala António Barreto.

Agora, a responsabilização pode muito bem começar com a impossibilidade de substituição de deputados preconizada por Barreto, sem sombra de dúvidas. Mas isso, tanto pode ser levado a cabo em círculos uninominais como em círculos plurinominais: basta que as listas não sejam abertas como o são actualmente, responsabilizando os candidatos. Aí sim, deixariam de haver «nomes» para florear as listas, posteriormente substituídos por indivíduos colocados em lugares ilegíveis. Para além da intolerável falta de respeito pelos eleitores, vilipendia-se qualquer ética de responsabilidade, a qual não se cria com cargos e representações directas mas sim em casa.

Em suma, não vejo como, na prática, um independente possa ser mais responsabilizado que um militante. Faria mais sentido ao contrário, isto é, ser o próprio partido a exercer pressão sobre o candidato no sentido de o levar a honrar compromissos que enalteçam a imagem do partido e o conduzam ao sucesso eleitoral.
É pela proximidade? Desiludam-se os que acreditam nisso. Só se houvessem tantos deputados na Assembleia da República como há presidentes de freguesias (4221). Isso seria impraticável...
Num distrito pequeno em que se elejam 3 ou 4 deputados não há mais nem menos proximidade com um ou outro modelo. A proximidade passa mais pelo carácter das pessoas ou pelo nível de decisão: o poder local será teoricamente mais próximo do cidadão. Todavia, já conheci representantes do meu distrito à Assembleia da República e nunca falei com nenhum dos dois Presidentes de Câmara da minha cidade. A célebre deslocalização das Secretarias de Estado também é um excelente exemplo de proximidade ao cidadão…
A proximidade poderá fazer eventualmente mais sentido nos grandes círculos, pelos quais são eleitos deputados às dúzias. E depois? Andamos atrás deles a cobrar-lhe por não ter tapado o buraco da minha rua? Importa salientar que a ideia de proximidade em Portugal é muito delicada e susceptível das mais variadas interpretações… A turminha de Santana Lopes que o diga.

Mais uma vez, convém recordar que uma vez eleitos, os deputados são representantes da nação... Imagine-se o que seria se cada um fosse para o hemiciclo puxar a brasa à sua sardinha... Aí é que teríamos responsabilidade? Continuaria a dar jeito a muita gente mas não me parece o mais correcto. Se a única responsabilização de um presidente de câmara são as eleições... Quem é que responsabilizou Santana Lopes pela lamentável situação financeira em que deixou Lisboa, Figueira da Foz e o país? E Fátima Felgueiras? Pelo povo daquele concelho ela continuaria lá, de pedra e cal. E de que modo foram responsabilizados todos esses autarcas que cederam aos patos bravos, contribuindo para a consolidação de fortunas, agressões ao ambiente e desordenamento selvagem do território? Muitos continuam a gozar do apoio popular...

Finalmente, a Lei Eleitoral permite que cidadãos independentes em representação de nenhum partido, possam candidatar-se a cargos públicos em qualquer eleição. Ora, para isso não são necessários círculos uninominais ou plurinominais. Se eu quiser, posso recolher uns quantos milhares de assinaturas em candidatar-me às legislativas. Corro é o risco de não ser eleito... A não ser que a reforma seja feita a pensar no extermínio dos partidos políticos e da lógica que os gere. Ficam as comissões independentes como esse «Compromisso Portugal», constituído apenas por pessoas desinteressadas, que por acaso são gestores de topo e accionistas de grandes empresas...

Na verdade, esta questão em torno da representação enfermará sempre do mesmo mal: a qualidade dos políticos e a qualidade dos cidadãos. Enquanto permanecermos cristalizados e agarrados a concepções utilitário-ditatoriais, não há modelo que nos valha, porque não é nos invólucros que estão os nutrientes dos alimentos.

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