23 de junho de 2005

A galinha da vizinha põe mais crises do que a minha

Portugal está em profunda crise, não é novidade. Não é apenas uma crise económica, como o atesta o anunciado e mais que esperado Procedimento por Défice Excessivo pela União Europeia contra Portugal. Mas essa crise é também social e institucional. Já o sabíamos, apesar de o tendermos a desvalorizar como nos convém na nossa labuta quotidiana.
Por força das suas próprias dinâmicas e implicações, a crise social é aquela que menos se sente objectivamente (salvo alguns sintomas que nos vão sendo fornecidos) e a que mais profundas marcas nos deixa, ao sulcar os referenciais colectivos que se hão-de reproduzir conforme vão sendo modelados. É seguro que tais marcas, serão os nossos descendentes quem as vai diagnosticar e sentir o seu peso, tal como nesta altura sentimos o peso daquilo que é o nosso edificado civilizacional concreto. Nós somos uma parte do passado e faremos parte do futuro, na medida da herança que oferendamos às gerações vindouras. Não é só de ambiente ou status quo que resultam as apreensões de sustentabilidade, chavão que por artes mágicas entrou no vocabulário dos nossos políticos. E também um pouco nos Programas Operacionais Regionais... É cultura e formatação idiossincrática.

Contudo, evitando continuar a deriva que nos desvia teimosamente do assunto inicial [a concentração é a esta hora já demasiado fugaz e instável] em torno do PEC e do défice excessivo, no seguimento de algumas preocupações manifestadas acerca da competência das nossas instituições e governantes (ver em particular o último parágrafo de
Missão Impossível?!), não deixa de ser curioso constatar a extensão da relutância da própria Comissão Europeia com respeito ao nosso plano de saneamento do défice público.

Devo confessar que não pude conter o riso, num misto de indignação e de ridículo, quando li no Público de hoje que a Comissão já estaria acostumada ao natural empolamento nacional das contas apresentadas. Por isso, caracterizava como bastante "optimistas" as previsões nacionais, em perfeita alusão eufemística de uma realidade bastante mais sombria… Nesse caso, também eles digeriram a coisa com candura. Talvez tenha sido esta a mais-valia que prefigura uma contrapartida em sucumbir às tentações pessoais de um Primeiro-ministro em acelerado passo de corrida em direcção à glória, à sua exclusiva glória… e para nosso bem-estar, nosso excusivo e egoísta bem-estar...

Das duas uma: ou são os políticos portugueses que não têm credibilidade perante as instituições europeias, ou são os nossos técnicos, essa tropa de assessores que preparam os dossiers para os políticos. Ou ambos.

Então, alguém me explica como é que podemos ser credíveis se os dossiers que preparamos não são credíveis, gerando reacções de autêntica e indisfárçavel descrença entre os nossos parceiros? Neste momento, Portugal será para quem possui o mínimo conhecimento sobre a nossa realidade, uma espécie de Câmara de Setubal estritamente controlada (diria mesmo governada) pelo Tribunal de Contas. A cada dia que passa, a imagem de Portugal vai-se desvanecendo e a maquilhagem, transpirada pelo suor que a borra. Já vai sendo difícil explicar algumas coisas. Já começa a ser desagradável conviver com um país em que os índices de desenvolvimento humano são razoavelmente precários, quando foram feitos esforços também pelos outros, em particular pelos alemães que não só «tiveram que dar mesada aos inúmeros irmãos até aos 30», como também se viram a braços com o enorme esforço da integração da Ex-RDA.

E a comisão não só é relutante como avisa, num tom aqui propositadamente prosaico, que «não se pode contar com o ovo no cú da galinha», se a expressão me é permitida. Não mesmo. Aliás, se estabelecermos uma analogia, creio que algumas das críticas de Jorge Sampaio à banca também foram proferidas, considerando essa atitude de deslumbramento dos portugueses com o acesso fácil ao crédito. Isto porque em matéria de recurso ao crédito, metade dos portugueses deveriam ser considerados inimputáveis, pois não sabem gerir os seus rendimentos e as suas despesas com um mínimo de exequibilidade orçamental orientada por um mínimo de racionalidade, instrumental, que fosse.

«Contar com o ovo» que ainda não foi posto pela galinha, é perfeitamente ajustável às previsões do governo, postas em causa pela Comissão Europeia porque como essa gente não é parva de todo, não migrou dos campos de algodão para Bruxelas nem os «esquemas» são para eles última moda de paris.
Pelo contrário, sabem perfeitamente que basta um indicador se destabilizar para que as receitas desçam substancialmente; em teoria, basta que uma boa parte dos empresários portugueses transfira a sua morada para Espanha, beneficiando de mais incentivos, menores taxas de IRC e de um IVA substancialmente mais baixo, para que as receitas previstas se evaporem. Por isso, a insistência na redução das despesas. A sorte é que não temos a mínima vocação para explorar à séria o mercado espanhol. Só meia dúzia de empresários mais ousados e o resto prepara-se para pegar cada um na sua pá para dar umas bordoadas «à Aljubarrota».

Mas a crise que vivemos e que talvez não colapse a nossa economia como sucedeu em 2001 na Argentina [porque ainda nos protege das intempéries o enorme guarda-chuva da UE], é de tal forma geral que nem a racionalidade burocrática e legal, na sua vertente mais formalista do ponto de vista processual, parece funcionar com eficácia e neutralidade.

Perante a actual greve dos professores, num mesmo dia, vemos os tribunais Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada e de Lisboa, pronunciarem-se opostamente sobre a legalidade dos serviços mínimos impostos pelo Ministério da Educação para assegurar os exames nacionais. Perante tal insólito (bem sabemos que o carácter abstracto e universal pretendido pelo legislador pode suscitar diversas leituras), como se pode exigir bom senso a professores, sindicatos e ministério, se entre os próprios magistrados as divergências são evidentes? Trinta anos de democracia não fazem jurisprudências, ou ainda não chegou o tal programa informático para cruzar a base de dados da jurisprudência? Não se trata de um termo da decisão, mas do próprio sentido da decisão. Do alto da minha ignorância, parece-me que este tipo de casos emperra os tribunais, aumenta os tempos médios de cada processo porque simplesmente se tem que se adiar o desfecho pelo Supremo ou pelo Constitucional.

É claro que, nesta altura, as desconfianças da politização de decisões judiciais já começam a extravasar as ubíquas paredes do Tribunal Constitucional, transferindo-se para tribunais criminais, laborais, administrativos, etc. As novelas a que assistimos diariamente são disso um perfeito exemplo com processos que se arrastam no tempo, autarcas que fogem avisados para o Brasil, prisões preventivas por tempo indeterminado, julgamentos forjados nos media, violação do segredo de justiça ou magistrados que ameaçam o normal funcionamento das instituições quando se sentem acossados, reagindo com a natural prepotência que os caracteriza.
Esta crise constitui um sério rombo na independência dos tribunais e consequentemente na democracia, parece-me pacífico.

É bom que reflictamos nisso a sério, sem ilusões evasivas nem entretenimentos estratégicos: não somos todos bons, alguns de nós somos medíocres; os feitos portugueses do passado são louváveis mas relativos e enquadráveis contextualmente; o Euro foi interessante mas continuamos com os mesmos problemas e só desperta paixão entre o Madail, o resto é manipulação emocional dos media; somos homens deste tempo e como tal, pelas nossas acções não é o Vasco da Gama, o Afonso Henriques ou a Padeira de Aljubarrota que respondem; somos o que somos e temos que aprender a viver com isso, sabendo que é para os nossos netos tudo aquilo que de bom ou de mau deixarmos.