28 de junho de 2005

Nações (P)unidas

No ano em que passam 60 anos sobre a fundação da Organização das Nações Unidas, o actual Secretário-Geral, Kofi Annan, vem propor uma série de reformas para regenerar uma organização débil, do ponto de vista de um dos principais princípios fundadores: a manutenção da paz mundial. Apesar dos sucessos relativos que foi somando nas áreas de intervenção da UNICEF, UNESCO ou OMS, já são plenamente discutíveis, pelas suas lógicas processuais, organismos como o FMI ou o Banco Mundial.

Em todo o caso, dizíamos, é no que à promoção da paz mundial diz respeito que a intervenção da ONU mais se distancia dos seus princípios orientadores, consignados na Carta das Nações Unidas, de 26 de Junho de 1945: “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra (…); reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas (…)”.

Mas, vamos por partes.
Em primeiro lugar, o Orçamento das Nações Unidas é largamente monopolizado pelas despesas correntes de funcionamento e pelas despesas militares. A justificação é simples e tão simplista quanto o que se segue: não há paz no mundo! Mas há centenas de subscritores da Carta das Nações Unidas. O que se passa então? Desde o final da 2ª guerra mundial, não só não se evitaram conflitos, como alguns foram inclusive instigados pelos subscritores iniciais e que curiosamente dispõem de poder de veto no Conselho de Segurança da ONU.
Em nome da democracia (Iraque, Afeganistão), do socialismo (Vietname, Cambodja, Coreia, etc.), da segurança de minorias étnicas e de maiorias étnicas (índia/Paquistão, Ruanda, Bósnia, Costa do Marfim, Kosovo, Etiópia, etc.); em nome da segurança «geo-estratégica» (Afeganistão, Cuba, Panamá, Nicarágua, Chile, etc.), em nome da religião (Iraque/Irão, Israel “contra todos”), em nome dos «direitos adquiridos» (Angola, Moçambique, Guiné, Argélia, Jugoslávia, Tchetchenia, etc.). Mas também em nome de interesses particulares. Arriscar-me-ia a nomear todos aqueles conflitos indicados e mais alguns que degeneraram em guerras civis e outros ainda que por a memória me atraiçoar, não são aqui considerados.

Portanto, em matéria de conflitos armados, a ONU não só fracassou como viu os países com mais poder sempre metidos nas cogitações que deram origem a esses conflitos. Em particular, Estados Unidos da América e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, respectivamente, guardiães da democracia e da igualdade.

Em segundo lugar, os direitos humanos. Foram de facto conseguidos alguns progressos, é indesmentível. Para se ter uma ideia, num «curto espaço de tempo», cerca de duas décadas sobre a Carta das Nações Unidas, os EUA reconheceram direitos básicos aos negros, como poder entrar num café de brancos ou mesmo, poder votar. Recordamos que a igualdade política, na qual se encontra implícito o sufrágio universal, é um dos princípios básicos da democracia. Também é importante ter em conta que os EUA são, como enfatuadamente gostam de bradar às sete partidas do mundo, a “democracia mais antiga”. A África do Sul conseguiu proeza maior nesse campo: quase 5 décadas até ao termo do apartheid. E são tantos os progressos… que nem vale a pena discorrer sobre a exaustiva lista de países…

Mas nestas matérias ninguém está a salvo deste tipo de comportamento exemplar, quer no tratamento de presos de guerra, políticos ou de delito comum; na negação de direitos fundamentais como a livre expressão ou a igualdade perante a lei ou até mesmo nos direitos das crianças. E não são só esses países tradicionalmente «prevaricadores» aos olhos do senso comum.
É muito fácil encontrar inúmeros exemplos de abusos de autoridade em Portugal (que vão do sopapo à decapitação em esquadras da PSP, GNR ou nas prisões). Mas para melhor enquadramento, por favor, consultar os relatórios anuais da Comissão dos Direitos Humanos ou da Amnistia Internacional. E no campo dos direitos humanos, o maior flagelo de todos é aquele infligido por déspotas em todo o mundo e pelos seus cães a milhões de pessoas por meio da fome e da miséria (seja através da guerra, seja através da repressão ostensiva e mesmo em campos de refugiados).

Apesar da DUDH (Declaração Universal dos Direitos do Homem) ser na verdade uma DODH (Declaração Ocidental dos Direitos do Homem), a verdade é que teria sido preferível a muitos países, não engrossar o alastramento da hipocrisia mundial, optando por não subscrever a dita DUDH. Seria muito mais coerente. Consola alguma pressão internacional que é feita, em jeito de controlo social entre comadres: «ai, Maria, não batas no menino tantas vezes por dia, que ainda lhe pões um braço à banda. Faz como eu, bate-lhe só ao pequeno-almoço e ao jantar, que é às horas que tomo os comprimidos para a azia».

Bom, no que respeita à dignidade da «pessoa humana» a que se refere o preâmbulo da Carta das Nações Unidas, então aí, entramos no domínio do potencial absurdo. Confesso que não consigo ultrapassar a barreira epistemológica da «pessoa humana», partindo do princípio de universalidade que enforma a DUDH. Chega aí parou!
Sinto-me impotente para distinguir uma pessoa humana de uma pessoa não humana. Talvez este primado da «pessoa humana» tenha suscitado alguns equívocos que justifiquem assim o total respeito pela DUDH. Ok, nesse caso, está explicado, as pessoas não humanas não podem ser abrangidas pela DUDH. Ok, estão abertas as hostilidades. Só preciso saber se existe alguma comissão que me diga quem são as pessoas humanas e as não humanas neste país…

Finalmente, a igualdade entre as nações. Grande engodo! Como é do conhecimento geral, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (o órgão máximo de decisão) incorpora 15 membros, dos quais 5 são permanentes e 10 eleitos. Contrariamente a qualquer processo democrático, aqui vigora a regra da minoria. Senão vejamos. Em primeiro lugar, os 10 eleitos estão a fazer número, portanto nem merece a pena serem considerados. Ora, os 5 membros permanentes, são como se sabe, os 4 grandes vencedores de 1945 e o outsider do conluio inicial, a China, que pela sua dimensão e importância regional (à época), passou a fazer parte dos 5 «cavaleiros do apocalipse». Cada um destes países, pode inviabilizar qualquer decisão tomada em maioria ou em unanimidade, através do direito de veto. É um género de Joker vitalício. Muito cómodo. O desrespeito de muitas resoluções da Assembleia das Nações Unidas tem início nesse órgão dominado pelos interesses da China, França, Rússia e Inglaterra. Ah, também os EUA.
Portanto, desde sempre, a ONU viu a sua capacidade de intervenção cooptada aos interesses dos poderosos e restringida por interesses sectoriais e particulares dos mesmos. E não nos iludamos, porque a maior parte dos conflitos e guerras abertas descritos anteriormente, foram obliterados, cozinhados e gizados na antecâmara que dá acesso ao plenário, pelos defensores da humanidade. Sabe-se hoje que o genocídio no Ruanda era comentado nos corredores do poder, cerca de 3 meses antes de acontecer. Os serviços de inteligência tinham dados concretos que indiciavam o preparo.

A proposta de reforma de Annan (em particular no que ao Conselho de Segurança concerne) já suscitou algumas tensões entre os membros, com vários modelos de alargamento do Conselho de Segurança a serem discutidos entre panelas e tachos na busca de alianças e apoios.

Atenção, alianças e apoios! O que é isto senão meras jogadas estratégico-instrumentais de grandes e pequenos em busca do seu lugar no jogo do poder, do seu próprio Joker?
Isto é um clássico e foi escrito há quase 5 séculos, portanto, em matéria de direitos humanos, igualdade entre os povos e solidariedade, estaremos atrasados aí uns 10 ou talvez 30 séculos.

Sem comentários: