28 de junho de 2005

Caça aos grilos, lembram-se como era?

É diminuto o alcance das medidas anunciadas pelo governo no combate a privilégios, acusam alguns. Talvez com razão. Ainda assim, o pouco que seja feito já é relevante num país que até aqui continuava a ser o país do “Ballet Rose”. E convenhamos, não é por isto [as medidas do governo contra os «direitos adquiridos»] que vai deixar de ser. E não sendo, veja-se como hordas de corporações têm feito sentir publicamente a sua indignação junto da opinião pública, como se a solidariedade não fosse um conceito com limites. E a paciência, pois se os «direitos adquiridos» fazem parte de um processo de luta ao qual presto a minha homenagem, não é menos verdade que apenas alguns cidadãos são abrangidos, e, nesse caso, passam a ser privilégios de uns poucos, entre os quais [parcialmente] me incluo. Por isso, só devemos ficar satisfeitos quando os sem-abrigo de Lisboa se mudarem para a Alta, num desses apartamentos que as imobiliárias andam agora a impingir aos jovens.

Na iminência de se verem acossados por uma cruzada contra os «direitos adquiridos», imediatamente pularam das trincheiras, de peito aberto, reivindicando os seus estatutos especiais e o desgaste causado pela profissão e um sem número de desonestidades intelectuais para com todos aqueles que «comem e calam».

Já vimos os magistrados com ameaças de lançar o caos, já vimos professores a confundir o legítimo direito à greve com paralisações egoístas, já vimos os deputados a fazer birra porque têm que começar a dar ao cabedal, já vimos os polícias a manifestarem-se pelo direito de continuar a esventrar o sub-sistema de saúde, ou os militares a aludir ao desgaste que as paradas militares e o render da guarda causam entre as flores de estufa que comandam. Em suma, já vimos de tudo, numa altura em que todos deveriam assumir as suas responsabilidades. Ou melhor, já vimos de quase tudo, em escassas semanas…

Faltam os médicos… esses…

Porque os farmacêuticos, esses, não perderam tempo, embora plenos de requintes e organização. Há dias, a Associação Nacional de Farmácias fez chegar a todos os autarcas deste país, uma carta (por sinal, intoleravelmente escrita num português macarrónico), acompanhada por quatro documentos anexos, na qual se queixavam do governo, que em conluio com a industria farmacêutica, está a atacar injustificadamente as farmácias. Entidades que, segundo João Cordeiro, serão o elo mais fraco. De resto, deve ser reconhecido o mérito à ANF porque a campanha foi muito bem preparada: cartas aos autarcas e imagino que a meio mundo, entrevistas na Rádio Renascença com o evidente efeito dominó na imprensa escrita e quem sabe, para a polícia judiciária, Jardim Zoológico e Hollywood.

Mas, quer na carta, quer na entrevista, João Cordeiro lá vai sempre adiantando que a atitude das farmácias para com o governo, nesta hora de sacrifico, é de colaboração.

Na base das reivindicações, o facto de o esforço das farmácias vir a ser superior em 140% à indústria farmacêutica, que verá reduzido em apenas 3 pontos percentuais o respectivo esforço financeiro, decorrente da anunciada redução dos preços. Quem pagará mais, serão portanto as farmácias, quando a redução dos preços deveria ser equitativamente paga pelos três sectores: indústria, grossista e farmácia.

Acontece que, como o homem não anda aqui por ver andar os outros, sempre lança mais umas achas para a fogueira onde alguém se vai queimar. É que a redução da comparticipação do Estado aplica-se sobretudo aos medicamentos genéricos, contrariando o objectivo do aumento da sua quota de mercado.
Por outro lado, segundo Cordeiro, têm vindo a ser praticados preços ilegais, superiores ao estipulado, levando o presidente da ANF a concluir que o Estado foi lesado, só em 2004, em 227 milhões de euros (nos 100 medicamentos mais consumidos, que equivalem a cerca de 35% do mercado).

O mais escandaloso, o Protocolo assinado entre o Ministério da Saúde e a Apifarma – Associação Portuguesa de Industria farmacêutica – também enviado em Anexo – em 27 de Janeiro de 2005, o qual compromete o Ministério da Saúde a desenvolver todos os esforços para que as dívidas dos hospitais públicos sejam liquidadas, permitindo em alguns casos que o crescimento da despesa com medicamentos aumente.

E não ficamos por aqui. Em carta enviada em 1 de Junho de 2005 ao ministro da saúde, são apontados 4 factores responsáveis pelo aumento da despesa pública no sector em que intervêm as farmácias e que passo a transcrever integralmente, pois são documentos tornados públicos pela própria ANF:
1. “A prescrição médica padece de conhecidos vícios de comportamento e de enquadramento legal que a condicionam, gerando despesa pública artificial e desnecessária.
2.
O nível de prescrições é definido pelo Estado, sendo complexo, pleno de regimes especiais que o tornam ingovernável e, como tal, facilitador de abuso, senão mesmo de fraude.
3. Os preços dos medicamentos, que estão no centro da polémica, são definidos sem qualquer intervenção do sector de Farmácias [nuns casos propostos pela indústria farmacêutica e aprovados pelo Ministério do Comércio e outros casos, decididos pela industria farmacêutica e vigiados pelo Ministério do Comércio].
4. As margens de distribuição são assim, o único factor, relativo ao sector de Farmácias, que contribui para a despesa pública com medicamentos”, sabendo que a margem em Portugal é a mais baixa da União Europeia, o preço da indústria farmacêutica é o segundo mais elevado da União Europeia.

A finalizar a carta referida, é sugerido um conjunto de 11 medidas ao Ministro Correia de Campos [que não se dignou responder], que ajudariam à diminuição da despesa pública com medicamentos, pelas contas da ANF, em cerca de 200 milhões de euros. Demagógicas ou não, as medidas seriam em tese menos penalizadoras para o utente do que o regime em vigor. E supostamente, menos penalizadoras para o contribuinte.

Porque se por um lado, colocam a ênfase nos medicamentos genéricos (revogação da legislação que confere ao médico total autoridade na sua prescrição, dando a possibilidade aos doentes em optar por medicamento genérico ou manutenção da majoração a 10% na comparticipação neste tipo de medicamentos), por outro lado, é exigido o cumprimento da legislação em vigor sobre os preços dos medicamentos.

Aguarda-se por isso, resposta da poderosa indústria farmacêutica, não se vislumbrando no entanto, qualquer lógica coerente da parte de um governo apostado em diminuir a despesa pública e suportado no parlamento por uma maioria socialista, recordam-se?

Isto tudo para dizer o seguinte: mais ou menos tacteante, o mérito deste governo tem sido clarificar ou dar a conhecer dinâmicas, relações e privilégios que andavam cuidadosamente arredados da vida pública. E de facto, sucedem-se os visados, com mais ou menos razão a sair para a rua sem maquilhagem.

Todavia, a atenção deve estar redobrada por estes dias pois em monarquia, a um rei sucede normalmente outro…

E no final, quem é que se vai queimar com tão luxuriante fogueira, quem é?
PS: No momento em que este post foi escrito, a Apifarma ainda não tinha denunciado o protocolo com o Estado. A estratégia da ANF está a dar os seus frutos...
Para outra altura ficam as sucessivas trapalhadas do governo.

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