13 de junho de 2005

O longo caminho da democracia

Na hora do adeus a Vasco Gonçalves, Álvaro Cunhal e ao poeta Eugénio de Andrade - desde já, se me é permitido endereço as mais sinceras condolências ao mundo - e enquanto as televisões andam ocupadas a saber quantas pessoas já passaram (e quem são), vão passar pelo local onde se encontra Eugénio de Andrade em câmara ardente, lá temos também que gramar o tempo de antena dos eternos papalvos marialvas «para não lhes chamar outra coisa qualquer»...
Desta vez foi o Presidente (ou será monarca?) do CDS-PP, Ribeiro e Castro, que quando instado a pronunciar-se sobre a morte de Álvaro Cunhal, apelidou de «serôdia» a identificação de alguns sectores da sociedade portuguesa com a doutrina perfilhada por Cunhal, referindo-se aos militantes do PCP e aos ideais comunistas, com os quais somos livres de concordar ou discordar.
É que nesse campo, nós, os democratas não podemos ser, senão peremptórios: nenhum partido em Portugal trabalhou tão arduamente na luta contra o fascismo e na defesa da democracia como o PCP. Mesmo com o PREC, ainda hoje subsistem dúvidas acerca do consenso no interior do próprio PCP sobre a implementação de um regime «socialista» e é do conhecimento público que não derivámos para uma guerra civil porque houve um mínimo de bom-senso e respeito pelo povo e por aquilo que é o interesse nacional. E essa foi uma demonstração cabal e extraordinária de democracia e apego pelos valores democráticos da liberdade e da igualdade política no respeito pelas vontades individuais. O PCP e os sectores esquerdistas do MFA aceitaram e souberam respeitar a contra-revolução da sociedade civil, apoiada pelos sectores mais moderados das forças armadas. ponto.
Portanto só os ignorantes, os incultos e os ressaibados podem negar o papel do PCP no desgaste do salazarismo e mesmo na consolidação da democracia, enquanto partido na oposição, assumindo perfeitamente a sua missão na construção de um Portugal livre, um pouco mais justo e também um pouco mais desenvolvido. Muito provavelmente porque houve o 25 de Novembro, e depois disso veio Mário Soares, Alfredo Nobre da Costa, Carlos Mota Pinto, Maria de Lurdes Pintassilgo, Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão e Cavaco Silva. Daí para cá a coisa não tem sido muito saudável...
Ou seja, este indivíduo a quem não se lhe reconhecem quaisquer méritos ou acções relevantes a não ser o seguidismo saloio a Vale e Azevedo nos tempos do Benfica, beneficiando daquilo por que Cunhal e outros como ele lutaram, transcede aquilo que é a legítima liberdade de expressão, para entrar numa contradição impensável: não lidando de forma natural com a democracia, invoca esse conceito com o qual figadalmente convive, para atacar esse seguidismo serôdio, a seu ver, anti-democrático. Olha quem...
É claro que isto só se encontra em indivíduos com uma deficiente formação histórica, política e cívica para quem os manuais doutrinários do 5º ano da escola comercial, passados a pente fino por Marcello Caetano, são a obra literária do milénio.
Na sua concepção mais simples, generalista e consensual, a democracia é o governo do povo. Etimologicamente é uma palavra composta por aglutinação e que resulta dos vocábulos gregos demos + kratos, que significam grosso modo, povo e governo. Daqui deriva posteriormente a representatividade e a participação como legitimação da vontade popular*.
Terá Ribeiro e Castro alguma vez reflectido, mesmo que remotamente, sobre quem representa? É que Álvaro Cunhal, não só sabia quem representava, como sabia para onde ia e agia em conformidade e coerência com os seus pressupostos ideológicos. E o mais importante de tudo é que Cunhal poderá ter muitas vezes entrado em conflito com oponentes, estigmatizado comunistas vira-casacas, mas nunca dei conta de que menosprezasse o povo!
A democracia em Portugal tem realmente um longo caminho a percorrer...
* Também se pode consultar material deste em livros de filosofia política, ciência política e sociologia (são normalmente vendidos em livrarias) e até em revistas, jornais e na internet (aquela que se vai de ratinho na mão e se vê a edição online do «Burladero»).

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