4 de julho de 2005

A impossibilidade de...pensar

Na revista Xis (Público de 2 de Julho), um leitor manifestava a sua indignação pelo triste episódio ocorrido no dia 10 de Junho, com a manifestação xenófoba de extrema-direita.
No seu «bem-haja aos imigrantes», Manuel Pessôa discorria, entre outras coisas, sobre o insulto levado pelos manifestantes aos mais altos símbolos da nação. E na verdade a acção dessa gente tem tanto de insultuoso como de contraditório. Retenhamos pois, a seguinte citação ao texto:

“Cantavam A Portuguesa […] junto da estátua daquele D. Pedro que fundou a soberania do Brasil […]. Vieram do lado do Martim Moniz à Mouraria, que desde o tempo de D. Afonso Henriques é sítio de etnias diferentes. Alguns dos que se manifestavam contra os imigrantes traziam a bandeira portuguesa, verde e rubra em que sob o escudo português se vê o símbolo da ligação histórica entre o nosso povo e os demais deste planeta: a Esfera Armilar.”

Esta passagem é brilhante. Porque eivada daquela cegueira que fere de morte qualquer discernimento, essa gente é incapaz de compreender a extensão da simbologia que jura respeitar. E esse é o único ponto da minha «discórdia» com o texto de Manuel Pessôa: o opróbrio deixa de o ser na verdade, porque essa gente não consegue entender que o património histórico e cultural que colericamente defendem, e que fornece um carácter distintivo à especificidade da identidade portuguesa, é o resultado de intermináveis camadas culturais acumuladas, resultantes de processos mais sincréticos do que aculturantes. Para recorrer a uma analogia simples de compreender, o cavalo Lusitano é o resultado de inúmeros cruzamentos feitos pelo homem.

Tal como os cavalos, também o povo português recebeu apports genéticos de iberos, celtas (indo-europeu), celtiberos (entre os quais os lusitanos e os cónios), fenícios, romanos, visigodos, suevos, vândalos, árabes e toda essa mescla sanguínea que se sucedeu com a reconquista cristã. A picota, as laranjeiras, as fontes, as técnicas de navegação, as especiarias (entre as quais o hábito da malagueta entre «retornados» e antigos combatentes em África), não teriam sido possíveis sem a presença de toda esta «babilónia» fervilhante e daquilo que de mais importante trouxemos de todos os lugares por onde passámos: a cultura.

E do mesmo modo, esse Portugal mítico, glorioso e saudoso, deve mais ao relacionamento com esses povos sintetizados na Esfera Armilar do que ao passado recente do colonialismo mais «europeu» que vivemos no último século. Coincidência ou não, esse é o período do declínio de Portugal, pelo menos até 1974 [apesar de tudo…]. Quanto a este período «menos glorioso» da nossa história, marcado pela incapacidade em acompanhar as tendências industrializadoras do resto da Europa, a instabilidade política, o fascismo e o adiamento do inevitável, a responsabilidade só pode ser atribuída a nós próprios, a nós, «os brancos».

Ora, se é de ignorância que temos aqui vindo a tratar [ainda que da mais abjecta], é-nos vedada a possibilidade teórica de considerarmos sequer, a existência de um raciocínio lógico que coincida com uma afirmação de vontade legítima, coerente. A demonstração cabal da total insipiência racional é essa invocação de símbolos nacionais para afirmações nacionalistas e xenófobas, as quais só poderia eventualmente fazer sentido em países historicamente fechados sobre si mesmos, empiricamente sós, portanto. Não conheço nenhum, pelo que a invocação de símbolos nacionais é desde logo incompatível com reivindicações e vilezas de natureza racista.

Por outro lado, a única raça antropologicamente conhecida é a humana [tanto quanto me é dado conhecer], cuja ancestralidade é localizada algures em África, entre os 2.5 a 3 milhões de anos, com o sequente processo de humanização do qual somos subsidiários. E aqueles semblantes carregados pelas têmporas salientes e mandíbulas fortes a vociferar palavras de ordem inconsequentes contra a própria espécie humana, reportam-me imediatamente para os excelentes documentários de ficção da BBC acerca da Humanização e para o filme visto 5 vezes durante o Secundário, “A Guerra do Fogo”. A distinção entre a realidade e a ficção, é-nos finalmente dada pelo realizador da RTP quando abandona o grande plano da saliva a voar de bocas esquálidas, enquadrando a imagem de todo aquele preparo com uma infra-estrutura lisboeta construída quase exclusivamente por imigrantes africanos e do leste europeu.

Portanto, aquilo que aqui tratamos, não é só de ignorância, mas também de diminuição intelectual.

1 comentário:

Anónimo disse...

Um exemplo paradigmático de dar pérolas...a porcos !