30 de agosto de 2005

OS DEUSES TAMBÉM JÁ FORAM HOMENS




Pouco mais de um mês passou sobre o trágico desaparecimento da Catarina. Ainda não parece possível que tenha realmente acontecido. Que a tenha perdido. Solipsismo preventivo de um martírio, em jeito dos poderosos contrafortes Vauban, numa dimensão onírica apaziguadora duma realidade em ruínas. Confundem-se, realidade e sonho.

As agruras que a vida nos prepara ditaram uma penalização demasiado dura para os que ficam e sentenciaram sem apelo, o fim de uma existência encantadora, plena de energia e vontade de viver. Dar, na mais desprendida das formas. Estou certo que nesta como em ocasiões similares, a sintaxe é absolutamente redutora. Sobretudo quando se pretende definir uma pessoa como a Catarina. A Catarina é na sua imensidão a Catarina, a Fiuza, a Fu, a Cati, a Cata, a Kathara. Tive o distinto privilégio de conhecê-las a todas. Crescendo Juntos.

A perplexidade deu lugar ao desespero e a este sucedeu a revolta. Sentimento de impotência perante o vazio, na procura obsessiva em repor o sentido desertor, mesmo que pela força. Motim dos sentidos como resultado de uma traição aos valores defendidos, às normas respeitadas, ao peito aberto. Sentimento de revolta paradoxal, porque sem arrependimentos, a não ser aqueles que nos desafiam pela introdução a uma velha oração subordinada condicional «se o mar tivesse varandas» …coisa que desconfiamos não ser verdade nem admissível do ponto de vista temporal. Podemos ser, por vezes, mais vulneráveis que uma simples e frágil lâmpada de vidro à solta. Essa lá está, incólume, sem um único arranhão.

Nunca o conseguirei entender, seja apelando ao conforto providencial das entidades metafísicas criadas pelos homens, seja procurando compreender estes acontecimentos como circunstâncias dispostas num encadeamento meramente natural e só isso. Talvez porque somos determinados culturalmente, logo historicamente. O amor também é isso, em particular o amor romântico. No entanto, tantos outros afectos há, que podemos encontrar de forma inequívoca na natureza e na própria ontologia provável dos homens, dos que foram deuses e dos outros. E reuni-los sincreticamente, diluindo-os naquilo em que nos conhecemos e em que os outros nos reconhecem. Enquanto indivíduos e enquanto espécie, portadores de afectos, camadas de informação acumulada e transmitida, todo o tipo de necessidades e por vezes alguma racionalidade (mais ou menos instrumental, mais ou menos estratégica). Marcas genéticas e marcas culturais. Intuição, sensibilidade, empirismo, racionalidade.

Somos seres do nosso tempo, é certo. Todavia não é possível escapar a essa dimensão transversal que nos liga à intemporalidade e à universalidade, conferida pelas características únicas que equipam a espécie humana. A dor, a perda, o medo, a solidariedade, a conjugação de esforços para enfrentar um mundo natural hostil, os instintos primários de sobrevivência, o prazer, a razão, etc., são assimetricamente distribuídos mas comuns a todos nós. De resto, podemos encontrá-los nas hordas pré-históricas bem como nas sociedades industriais avançadas. Exaltam a vida e dela são força motriz. Não lhes escapamos, por isso sofremos, amamos, desejamos, criamos.

Durante este período verdadeiramente incompreensível, experimentei todo o tipo de sensações paradoxais. Sentimentos contraditórios toldaram a minha mente, perfeito laboratório de ideias e rascunhos que circulam a velocidades vertiginosas, sem sentido nem destino claramente definidos. Há muito e nada por dizer. Creio que continuará a ser assim. E assim é quando se experimenta o absurdo na sua mais fina e dilacerante malha.

A dualidade representada pelo par Morte e Vida está sempre presente, com todas as repercussões que isso possa ter nas nossas vidas. Já estava ab origine. A atracção irresistível pela morte impele à sua projecção sem que consigamos balizar perfeitamente uma existência dentro da temporalidade. A noção de Infinito é apenas isso, um conceito, com o qual o grosso de nós não sabe lidar domesticamente, apesar do intenso rascunhado científico. Existencialmente balizados por ele, consideramo-lo logicamente, sem a possibilidade de o verificar. Incerteza. Por isso a morte é exaltada, ritualizada, temida, amada.

Mas a morte está na vida, são indissociáveis. A memória é o elemento de ligação por excelência desses dois «mundos». A memória está nas acções dos homens e no legado patrimonial e simbólico que deixam de geração em geração. Diz-se igualmente que na morte há vida. É-me particularmente angustiante reconhecer vida na morte. Mas por meio da memória, posso admitir que sim. Em todo o caso, desde sempre que tenho uma relação pouco razoável com essa senhora. Por isso, desde sempre procurei evitar caminhar no mesmo passeio, sobretudo em passeios estreitos. Presumo que não fosse possível fugir a vida toda. Só não contei com esse encontrão seco que a Morte não deu absolutamente em mim, para dar na que caminhava comigo, como não lhe tivesse oferecido o resguardo interior do passeio para a proteger, em vão, dos perigos à espreita. Cautela!? Pois sim…

Porém, nada parece haver de mais natural que esse convívio entre a vida e a morte num passeio exíguo, resvaladiço tal qual o convés de um pesqueiro em alto-mar com vagas de doze metros. Dá a sensação que o equilíbrio é demasiadamente arbitrário, liderado pela precariedade, não raras vezes insuperável. Esse é o nosso equilíbrio, remotamente controlável.

A vida começa exactamente com uma condenação capital. Nesses termos, o fundamental da questão remete unicamente para o quantitativo e qualitativo da vida e não para a sentença em si, a morte em si. A inexistência da Morte ocorre a par da inexistência da Vida. E os seus contrários, naturalmente. Trata-se portanto da dilatação do prazo, não da inevitabilidade dos limites. Por isso, mais do que nunca, incomodo-me sempre que vejo pessoas a sofrer sem necessidade alguma, encastados pelas demandas sociais e incapazes de alcançar a autodeterminação, relativa que fosse. Entre eles me incluo, nessa vida unidimensional, marcuseana, heterónoma e feia que os homens construíram. Simultaneamente bela. Reconhecendo que as circunstâncias do momento agitam e remexem reflexivamente as consciências de forma efémera, não deixa de ser curioso quando constato pequenas alterações de posicionamento na vida dos outros, em busca da vida demarcada por esse horizonte temporal variável.

A mudança tem espaço para caber nas nossas vidas, é intrínseca à capacidade evolutiva dos seres vivos. Na medida da redefinição de uma vida, assim evolui o projecto ou a sua rejeição. Quem me conhece sabe, sempre fui mais de projectos (sem obliterar necessariamente essa dimensão de espontaneidade que os anima e matiza de cores variáveis). Os grandes projectos. Também os grandes projectos de gaveta. Tenho milhões, distribuídos pelas algibeiras rotas do meu cérebro. Entretenimento que remenda e impele mecanicamente para algo.

Por entretenimento, dei vida a In Tenui Labor, em Outubro de 2003. Tubo de ensaios para o aperfeiçoamento das coisas, de resto, a perfeição exige trabalho… Complemento ao resto, reforço escrito das convicções e de algumas formas de pensar, equilíbrio perante a ausência, também. Mais vocacionado para a reflexão crítica (e para a crítica francamente nonsense embora por vezes hilariante), havia de terminar o seu ciclo com o único tipo de registo para o qual não fora inicialmente desenhado, em redor da autobiografia. Projectos que fracassaram na sequência de um par de frames, à semelhança deste projecto de progressiva confluência com o imperativo categórico kantiano. Este, um projecto de vida. A isso estaria eventualmente condenado, como de resto os Buendia, de Macondo, para quem centenas de anos de solidão foram os bastantes para acabar de vez com uma estirpe.

Porque passou pouco mais de um mês, no futuro, que Althusser dizia ser «muito tempo», outros projectos serão encetados, certamente. Há sempre coisas na forja. Assim é o ser humano. Projectos de vida, projectos de vivência, sobrevivência, desistência também. Sobrevivência à dor e ao sofrimento, nesse estádio baudelariano em que a felicidade é fugaz, correspondendo a uma momentânea cessação da dor. Assim seja. Resigno. Instinto de sobrevivência, esse parece abundar. Daí a luta incessante para alcançar a estrela inacessível, intangível por definição mas saborosa, supomos. Na senda da quimera, da utopia, do irrealizável. Talvez seja essa uma das marcas distintivas daquela ontologia que procuramos diariamente e que anima as mais díspares e milenares tertúlias, ocupando mentes brilhantes na academia e no andaime: o que nos move, afinal? Questão curiosa esta, a do sentido da vida.

Uma palavra de enorme carinho a todos os que, de uma forma ou de outra, conhecidos e desconhecidos, manifestaram a sua solidariedade e amizade em toda a linha. Devo no entanto confessar que, com relação aos que conheço, essa demonstração de amizade não constituiu elemento de surpresa. Tenho a fortuna de ao longo da minha vida ter beneficiado da amizade de pessoas verdadeiramente excepcionais. A Catarina também.

Conforta saber que Ela está verdadeiramente entre todos nós, por tudo aquilo que nos deu. Em casa, na rua, na família, na faculdade, no IHMT, no Agrupamento 877, no CEAI, nos seus alunos, nas nossas atitudes e comportamentos, na gratidão.
E… pelo sim, pelo não, sempre que vislumbro ao longe um peneireiro cinzento a dançar harmoniosamente nos ares em jeito de cumprimento, ergo a mão aberta e agradeço com um sorriso. Para de seguida voar com ele. Uma questão de tempo.

6 comentários:

pachkilima disse...

O desencanto provocado pela admiração da realidade racionalizada deve ser, por quem pode fazê-lo, consistentemente destruído e reanimado... Doutro modo não seria possível viver... não estaríamos em movimento, apenas partículas sem fome, vontade ou lágrimas... Perder-me em frases que iluminam o que penso e não verbalizo, rever-me em dores e alegrias, usar espelhos que os outros são. Lutar com ausências que nos fazem ser egoístas, ter raiva, perder o rumo! E novamente reconstruir quem sou, não me livro deste egoísmo pois não?! Sobrevivência...

Anónimo disse...

Aleluia ! Temos o ARV de volta ao "público" que o estima e admira, porventura noutros projectos de singular intervenção cívica, simultaneamente humilde e glorioso na expressão da sua humanidade (in tenui labor...ab tenuis non gloria).

Anónimo disse...

Admiro sinceramente a dimensão e a profundidade do pensamento. Acho que a mente do comum mortal, como eu, não tem tempo, não quer, nem está disponivel para exercitar a introspecção, a autocritica e a auto-avaliação dos sentimentos e da consciência. Não sei se estou a dizer disparates..., mas tu escreves e verbalizas bem o que sentes. Por isso, ARV, vou ficando à espera daqueles textos para teatro....

Anónimo disse...

Apenas uma curiosidade (do anónimo das 12:27 PM) :

Neste fim-de-semana, em visita habitual a livrarias da cidade, deparei com um livro de Richard Bach (o autor do “Fernão Capelo Gaivota”), chamado “O Livro do Messias”, das Publicações Europa-América.
Na contracapa fazia-se um prévio desafio de sincronicidade, do género “experimente-o antes de o levar para casa” : colocávamos mentalmente uma pergunta, fechávamos os olhos, abríamos o livro ao acaso e, simultaneamente, escolhíamos a página da direita ou da esquerda.
Espontaneamente, ocorreu-me a seguinte questão : “Qual a síntese do que quis transmitir ao ARV nos meus comentários aos seus dois textos, escritos após a morte de Cartarina ?”
Abri os olhos e li a seguinte resposta :
“És dono do que viveste,
artesão do que estás a viver,
aprendiz do que viverás.”

Obviamente, comprei-o.

Anónimo disse...

Não sou muito de gralhas, porque normalmente releio o que escrevo, pois escrevo, normalmente, depressa demais. Desta vez, não reli e cometi uma gralha imperdoável (precisamente onde não devia): CATARINA.

NV disse...

Passamos a nossa vida a construir castelos de areia, castelos que os outros derrubam, castelos que nós derrubamos e castelos que, simplesmente, o mar leva. Mas, apesar da dor, da perda e da frustração da construção destruída, continuamos, continuamos... castelo atrás de castelo, vários ao mesmo tempo,nada nos pára, nada!
Até ao dia, em que também nós, ficamos reduzidos em grãos de areia, talvez, na memória de alguém!
Não há nada que dê mais prazer que qualquer acto de criação, mesmo sabendo que a obra não é intemporal...continua