20 de março de 2006

Carneirismo




Na edição de 18 de Março do jornal Público, Helena Matos descontrói a figura da eterna juventude que se afigura crescentemente como um valor social de obsessiva interiorização, contra o natural e indesejado envelhecimento. Este mito da juventude eterna é materializado pela atenção dispensada aos jovens, pelo alargamento etário da juventude ou ainda, pela assunção da juventude n’importe quoi para além das rugas e dos netos, verificável nas intervenções dermo-estéticas, no ginásio e no espírito jovial de sorriso amarelo.

Esta desconstrução razoável de Helena Matos está porém, na base da sua argumentação tirada a ferros, que assiste à inexistência de legitimidade dos jovens franceses que protestam nestes dias um pouco por todo o país (epicentro dos protestos na Sorbonne), contra o Contrato Primeiro Emprego (CPE). Esta iniciativa legislativa unilateral do governo (sem concertação colectiva com os parceiros sociais), prevê despedimentos sem justa causa dos jovens até 26 anos de idade, durante os primeiros 2 anos de trabalho. Um convite à discricionariedade e arbitrariedade das entidades empregadoras. O argumento do governo é invocado em nome da flexibilização do mercado laboral no primeiro emprego e a pretensa discriminação positiva aos jovens provenientes dos meios sociais mais desfavorecidos. Uma visão, de gabinete, mas uma visão…

Helena Matos conclui o arrazoado, remetendo essa falta de legitimidade dos jovens para a constatação do que considera os verdadeiros e legítimos problemas a enfrentar, ou seja, as condições laborais dos imigrantes, o crescimento do desemprego, a perda de direitos e garantias, etc. Outorgada a legitimidade do protesto por direito divino (em constante comunicação com a autora), Helena Matos deslegitima as acções de protesto dos jovens, acusando-os de alienação relativamente ao mundo que os rodeia. E nalguns casos terá a sua dose de razão.

É incontestável que os imigrantes que arriscam as suas vidas no andaime e em balsas cruzando o mediterrâneo, devem ser objecto da nossa inquieta atenção. É evidente que as degradadas condições laborais e o crescimento do emprego são factores de desequilíbrio social e económico que urge combater.

Contudo, não se trata aqui de olhar para os jovens com especial comiseração e proteccionismo, que exclua os direitos legítimos dos que lutam árdua e diariamente pela sobrevivência. Trata-se, tão-só, de garantir a igualdade de tratamento contratual e de acesso ao mercado laboral, sem que o factor da idade seja um critério decisivo e exclusivo. Justamente esse critério, dislexicamente apontado por Helena Matos como aquele que não se deve sobrepor às condições sociais e profissionais dos cidadãos, em particular, na opressão operada sobre a capacidade de trabalho revelada pelos mais velhos, sempre ofuscados pelo intenso brilho projectado pela atractiva e imaculada juventude.

Mais do que um simples protesto de rua, as manifestações em França (independentemente do aproveitamento feito por facções radicais e extremadas à esquerda e à direita), são uma demonstração da indignação, uma reivindicação de direitos sociais enquadrados no princípio da igualdade de acesso. Um exercício mais-do-que legítimo de cidadania consciente dos seus direitos e deveres. Numa democracia madura e consolidada.

Justamente uma recusa do «carneirismo» que se apoderou da sociedade portuguesa e que envergonhadamente, reconheço que a caracteriza. Dá muito mais jeito aos políticos ter uma sociedade apática, assertiva e sem convicções ou ideias, da qual se possa dispor como e quando se queira. São estes, os «brandos costumes
», confirmados e invocados por Helena Matos.

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