19 de outubro de 2006

A Solução de Kafka Para "K"

Assassin Menacé, René MAgritte, 1927



Apresentou-se em audiência. Coisas de homens. Fato negro engomado, sapatos de sola moldados ao pé, por um couro meticulosamente lustrado. Gravata a condizer. Um cangalheiro de si próprio, impecável. Aguardou serenamente pela sua vez, aquela em que lhe seria permitido usar da palavra, para a não desperdiçar, para não recorrer ao verbo em vão como tantas outras vezes. Tantas, quantas os seus deuses lhe foram inflamando no espírito, naquilo que julgara ser a sua verdade. Desta vez não.

Desta vez fora dominado por uma inexplicável lucidez, de modo que, nessa loucura de tudo discernir com admirável clarividência, preparou a voz ansiosa e com a língua, humedeceu os cantos da boca, desidratados pelo adiantado da hora e pela violência da contenção.

Desferiu lentamente um olhar de desprezo em redor, perscrutador, dirigindo-se desta forma aos presentes num único e amplo raid ocular, sem que o detivesse em ninguém. No eterno milésimo de minuto que durou a batida, a sala encheu-se de uma súbita tensão. Carregou solenemente a atmosfera quando, com expressão desafiadora, assentou definitivamente os olhos na estatueta de bronze.

- Não reconheço aqui nenhuma autoridade! Nem moral que seja! Disse peremptoriamente. – Não me revejo neste absurdo arrazoado, revelador do mais deprimente primarismo intelectual. Tanta pobreza... também de espírito! Os homens têm o triste dom de se entreter com as suas próprias farsas. Entretenimento anestésico para apaziguar as agruras da realidade, da vida que se prolonga sem um sentido, sem um propósito. Um cobarde virar de cara para o lado.

- Não lhes reconheço qualquer legitimidade, pelo que jamais me sujeitaria à humilhação de ver a minha autonomia ser sequer posta em causa por seres rastejantes, infames como os que tenho pela frente! A minha presença aqui é providencial.

Nisto, sem esperar reacção, levou a mão ao bolso da casaca e num movimento fulminante, encostou o metálico cano do pesado revólver ao crânio. Prosseguiu, com o indicador direito tensamente colado ao gatilho:

- O entretenimento a que me subjugais, para vosso simplório gáudio, não passa agora de um joguete de crianças. É nisto que reside a vossa justiça, na irresponsável atitude de quem julga poder dispor da vida sem do seu valor ter a mais pálida ideia, qual brincadeira de crianças projectada para a idade adulta. É este o vosso entretenimento, uma perigosa e pueril manifestação de humores, crenças e interesses. Ambições... como se fosseis, cada um de vós, uma estrela, um deus.

- Olhai agora para esses semblantes de horror, próprios de quem se dá conta de perder algo que nunca teve, o controlo das coisas. Olhai e vede como sois repugnantes e à vez, anedóticos. Ancilosados por considerar negligentemente a aceitação cosmológica do Homem, nessa soberba de que vos investis, como um ser apto a dominar algo que é incapaz de compreender: a imprevisibilidade e complexidade da sua própria natureza.

O disparo foi seco. A perplexidade tomou conta do exíguo compartimento. A compaixão, abandonou-o. Inexoravelmente.

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