14 de outubro de 2008

Da ambivalência dos sistemas políticos

Há um livro de Herbert Marcuse denominado O Homem Unidimensional que perspectiva quase apocalipticamente os perigos do enterro da bidimensionalidade, isto é, a reflexão crítica que preside ao questionamento da realidade.

Nas suas deambulações analíticas às sociedades industriais contemporâneas, Marcuse acusava um determinado conceito de emancipação humana, concretizada pela satisfação de necessidades artificiais (correspondentes às secundárias, na tipologia de Maslow) induzidas pelo mercado – a sociedade feliz produzida pelo capitalismo. Acusava o capitalismo de extinguir a dimensão crítica e reflexiva das pessoas em detrimento de uma apologia mecânica, de uma afeição cega aos valores e conforto do capitalismo.

Atentemos agora na tríade dialéctica hegeliana, composta pela tese, antítese e síntese. Ora, aquela aceitação acrítica advogada por Marcuse significaria, in extremis, a aniquilação do processo lógico que permite às sociedades conduzir-se da tese e antítese à síntese, por meio de contradições sucessivas.

Mas, o que são os movimentos fundamentalistas islâmicos, o comércio justo, os novos movimentos sociais desencadeados na década de 60, a descolonização, a extensão do sufrágio universal e das democracias, as conquistas sociais e laborais, etc., senão exigências contestatárias (inputs) insufladas nos sistemas?

Tal como o capitalismo (modelo económico), o comunismo, as monarquias e as democracias (modelos políticos) caracterizam-se por não serem tipos puros mas tipos ideais (em linguagem weberiana). Em parte, porque são manipulados por seres humanos, os mais ambivalentes e imprevisíveis seres que podemos encontrar na natureza. Uma faca, tanto pode servir para facilitar a sobrevivência humana como para lhe pôr termo.

Assim, em tese, o capitalismo em si tanto pode ser posto em prática para beneficiar um grande número de pessoas como para beneficiar um pequeno número. Por seu turno, a democracia permite, também em tese, dar voz e poder de decisão à generalidade dos cidadãos. Nesse caso, podemos identificar várias conjugações de modelo capitalista mais ou menos regulado pelo Estado. A Suécia e os EUA são dois exemplos de países cuja conjugação dos modelos se consubstancia em paradigmas distintos. E é nessa tónica da intervenção estatal que está a actual discussão sobre a crise dos mercados financeiros.

Portanto, não há um modelo único e, sobretudo, qualquer um é susceptível de avaliações que confirmam a bidimensionalidade julgada perdida por Marcuse. As actuais nacionalizações operadas nos EUA não configuram apenas a ajuda do Estado ao sistema financeiro mas, por desleixo do Estado, uma ajuda a si próprio.

O que não me parece claro é o virtuosismo absoluto reivindicado pelas ideologias quando, na verdade, nenhuma delas pode ser levada à prática na sua mais pura acepção. Mas pode evidenciar inteligência quando demonstra capacidade em operar transformações que visem a rectificação dos erros. O desgaste e uma complexidade tremenda ditaram a ruína do fabuloso Império Romano, após séculos, conduzindo a Europa por um período incrivelmente medíocre. Mas o Império Romano durou séculos e não décadas.

9 comentários:

Anónimo disse...

É possível um mundo diferente deste. Se acharmos que não, estamos velhos.
Se nos tempos da escravtura não houvessem homens e mulheres que achassem ser possivel todos viverem livres, a escravatrua não teria acabado.
O mesmo se passa agora. Há pessoas que acham inevitavel uma sociedade capitalista e que não há nada mais depois disto. Eu penso o oposto.
Acredito que é possível uma sociedade diferente, pensadora, critica, construtiva, solidária, etc...

Outrora ouve quem não desse ouvidos ou denominasse de louco quem tivesse ideias diferentes, não é relevante. O que é relevante é continuar a acreditar que é possivel ouro caminho, e lutar por ele.

Anónimo disse...

É possivel outro caminho

Anónimo disse...

Não há ruptura sem avultados prejuízos. O preço que se pagou pelo declínio do Império Romano (do qual ARV falava) cifrou-se em séculos de trevas.

não é o capitalismo que deve gerir a democracia mas sim o contrário

Anónimo disse...

Pegando no exemplo dado, prefiro também a suécia aos eua, à venezuela, ao irão, a cuba, a portugal, a israel, a angola, etc.

excepto no clima...


qualquer caminho é possível mas só terá sucesso aquele que considerar a verdadeira dimensão da natureza humana, com todos os seus defeitos e feitios. ou em alternativa, o eugenismo, tão do agrado de fascistas, comunistas e fundamentalistas religiosos.


anónimo das 10:22

Anónimo disse...

Não percebo como se pode preferir a Suécia, país com quem empatámos no futebol. Seja como seja os gulag eram conhecidos por reflectirem solidariedade, construção de uma sociedade diferente, liberdade de pensamento. Só que alguns milhões tinham o terrível hábito de falar demais e por isso morreram na Sibéria.
Actualmente, os movimentos libertadores dos sem terra também são muito solidários, principalmente com o meio ambiente pois ainda não se sabe muito bem quem é que desmata mais áreas arborizadas da amazónia: de os sem terra se os madeireiros.

Mas outro modelo é possível. Não estamos mais de acordo. só é preciso inventá-lo e continuar a garantir toda a sofisticação e conforto que este nos dá (viagens, cinema, música, tecnologia, internet, esplanadas, festivais de música, comida internacional, noites até às tantas (tipicamente burguês), etc etc etc

Anónimo disse...

@16.30

Quanto pessimismo!
Se pensássemos sempre o pior do mundo, não evoluiriamos.
Sonhar, acreditar, lutar

Anónimo disse...

O sonho da liberdade - quantas vezes mais objectivada no plano do ideal do que no real - associado ao respectivo conceito que vinga nas nossas sociedades, lança um véu de ignorância (no sentido de desconhecimento, sem qualquer carga atribuida)que impede a aceitação de formas alternativas de existência, assentes em escalas de valores diferentes. talvez alterando estes últimos, se possa dispensar o véu e começar a ver as soluções alternativas...

ARV disse...

O que o meu vizinho pareceu dizer é que construamos o homem novo e mandemos às urtigas esse incómodo valor da liberdade.

Cá entre nós, o que o gajo quer é condicionar as pessoas que visitam este espaço para que o apoiem nessa obsessão de impedir que as pessoas dancem com alguma liberdade na minha sala depois de uns copos de vinho.

Anónimo disse...

As pessoas que pensam pela própria cabeça continuaram sempre a visitar este espaço.