11 de fevereiro de 2011

A América de Tocqueville (3)

II. Para uma reflexão complementar



Sem prejuízo para o contributo sociológico do autor e para a narrativa entusiasmante em que são desenvolvidos conceitos centrais com grande mestria e precisão acerca de temas políticos e sociais de enorme relevância para o estudo das democracias contemporâneas (incluindo para a compreensão de múltiplos aspectos sociopolíticos da mais poderosa nação do mundo), subsiste um conjunto de questões sobre as quais se deve reflectir e que radicam, necessariamente, na forma como Tocqueville interpretou as informações produzidas/recolhidas ao longo dos nove meses em que permaneceu nos EUA. Como é evidente, não se trata de uma crítica velada a uma obra clássica nem ao brilhantismo incontestável do seu progenitor mas sim de uma interrogação sobre aspectos que suscitam uma modesta reflexão (e livre, tanto quanto possível, de análises a posteriori beneficiadas pelos 175 anos que nos separam). Em nove meses foi produzida/recolhida uma incrível quantidade de informação cujo tratamento terá necessariamente sido feito nos anos seguintes, em França.

Em primeiro lugar, com respeito à igualdade. Não é que Tocqueville não tenha dedicado algumas linhas à escravatura. Insurge-se aliás contra essa prática obscura que, na verdade, era uma das pedras basilares da produção agrícola americana e que, só em 1863 é abolida formalmente por Abraham Lincoln durante a guerra civil . Outros exemplos se podem dar, entre os quais a desigualdade de género. A dúvida que se levanta diz respeito à sua preocupação com um poder ilimitado favorecido pela igualitarização das condições de vida e sequente delegação de liberdades no Estado quando, em rigor, mulheres, negros e povos indígenas não pertencem ao mundo democrático. São, por assim dizer, subjugados por um poder ilimitado que se faz sentir paralelamente à construção do estado democrático: por um lado, devem-lhe obediência mas, por outro, estão fora dele. É forçosamente admissível que a concepção de cidadania a que se refere Tocqueville estivesse contaminada pelas referências filosóficas e culturais do seu tempo. No entanto, todo o edifício argumentativo assenta na crescente igualitarização das condições de vida que, sem dúvida e por comparação ao Antigo Regime, tendiam a fazer-se sentir entre os seres humanos mas que, para serem iguais, deveriam conseguir ser livres. E usar calças.

Por outro lado, também pode ser interessante constatar que em 1831 (ano da viagem), havia oito anos que o democrata Andrew Jackson se encontrava à frente dos destinos da América. Primeiro presidente oriundo da classe trabalhista, Jackson destaca-se pela política de poder político igualitário mas também pela incitação ao sufrágio universal generalizado, iniciado a partir de 1828. Contudo, importa dizer que a adopção do sufrágio universal pelos estados federais foi gradual e, em todo o caso, consiste na maior parte dos casos no levantamento de cláusulas como ser pagante de impostos, proprietário ou homem. Portanto, é possível que a observação da realidade de Tocqueville possa ter sido toldada pelo contexto mas que, ainda assim, seria talvez demasiado curto para elevar aquela perigosa e universal igualdade das eras democráticas a discussão filosófica. Curiosamente, essa igualdade é uma das promessas de facto não cumpridas da Modernidade, segundo as conclusões de Boaventura Sousa Santos em A Crítica da Razão Indolente.

Ainda assim, a este respeito não se pode deixar de invocar o materialismo marxista e o contributo dado à sociologia quando sentencia que é a existência dos homens que determina a sua consciência e não o contrário, procurando por essa via justificar a necessidade de entender o carácter material da realidade. Porque, no fundo, o que Tocqueville fez foi subtrair uma parte da realidade material à realidade objectiva e cognoscível que se lhe apresentava, correndo graves riscos de ter tomado a parte pelo todo. Mulheres, escravos e indígenas sofreram uma obliteração racional quando também as suas existências materiais determinam a própria existência dos cidadãos que um democrata como Tocqueville não deveria ter ignorado.

Há vários exemplos daquilo que se pode designar uma extrapolação muito duvidosa de comportamentos e atitudes sem verificação empírica, como o prognóstico sobre a igualdade tender a favorecer o panteísmo ou a celebração do espírito de autonomia das crianças americanas pela sua particular capacidade de entrar em consenso sobre as regras dos jogos . Fosse como fosse, não se vislumbra uma argumentação científica que sustente tais afirmações. Mas, em boa verdade, também não parece ser essa a sua preocupação principal.

Consequentemente, a própria génese do individualismo centrada na igualitarização das condições de vida pode ser falaciosa. Pelo que se disse, mais de metade da população americana não pertencia à esfera da cidadania porque não acumulava a fartura de ser simultaneamente livre e igual. Por outro lado, no postulado da igualitarização das condições materiais de vida – ainda que entre cidadãos homens, proprietários e pagantes de impostos – parece desprezar a crescente complexidade da sociedade americana de então, para a qual concorre o crescimento urbano, a chegada de milhares de imigrantes aos principais portos americanos e o próprio pré-arranque da industrialização americana. A um olhar tão minucioso ao ponto de identificar características idiossincráticas a partir de brincadeiras de crianças, dificilmente escaparia uma transformação social como a que teve diante de si. Essa lufa-lufa de imigrantes, o fenómeno urbano e industrial são, talvez, elucidativos da própria necessidade de expansão para Oeste iniciada nas primeiras décadas do século XIX.

É justamente contra tal desigualdade que se ergue uma nova doutrina política escassos anos mais tarde (sobretudo na Europa, é certo) tendo por base os trabalhos de Marx e Engels. Estes sugerem que é precisamente a divisão do trabalho que permite que a força de produção, o estado da sociedade e a consciência entrem em contradição entre si, na medida em que o trabalho manual e o trabalho intelectual, o prazer e o trabalho, a produção e o consumo, cabem a indivíduos diferentes. Desta diferença decorre a desigualdade e, com esta, a desigual repartição da propriedade que, no caso da América não é propriamente um assunto por descobrir, sobretudo nos estados sulistas. Paralelamente, as condições de isolamento a que se sujeitam os novos colonos que se lançam na conquista do Oeste exigem um reforço dos laços de solidariedade mas não é claro que fossem mais individualistas porque iguais: nas circunstâncias e na exposição aos riscos.

Em sentido contrário, não é crível que um fenómeno de diferenciação social como o que sugere Émile Durkheim a propósito da divisão social do trabalho não ocorresse diariamente numa sociedade crescentemente complexa e com um crescimento populacional exponencial (estima-se que entre 1625 e 1775 a população dos EUA tenha aumentado de 1.980 para 2.418.000 pessoas). Aliás, as características orgânicas do tipo de solidariedade sugerida por Tocqueville com relação às comunidades locais são demonstrativas de uma diferenciação que, não inviabilizando peremptoriamente a igualdade, dificilmente a universalizaria. Sobretudo nas grandes cidades e em algumas das sociedades mais abastadas, como se vê hoje . Mas isso, Tocqueville não tinha evidentemente a obrigação de saber.

Suscita ainda algumas dúvidas o factor decisivo de uma religião em particular numa sociedade em acelerado desenvolvimento. Não se põe em causa o papel dos puritanistas (até 1776, ano de independência das 13 colónias), mesmo sabendo que se estes se fixaram sobretudo no Massachussets, os quakers dominaram a colonização da Pensilvânia e católicos romanos derivaram para o Maryland. Mas, a título de curiosidade, se o calvinista Jean-Jacques Rosseau formulou um novo contrato social em que a liberdade é condição primeira da natureza humana, não podemos esquecer todos os contributos de prussianos, escoceses, franceses e ingleses que, após Descartes, inauguraram uma nova época.

Por fim, a conquista do Oeste a que Tocqueville assistiu poderia fazer prever que a chegada de imigrantes cultural e religiosamente diversos se avolumasse ainda mais, como se veio a confirmar alguns anos mais tarde com a superação dos emigrantes ingleses pelos irlandeses católicos e alemães. Ao factor da imigração acresce o da anexação e compra de territórios: em 1935, ano em que Da Democracia na América é publicado, metade dos actuais cinquenta estados já faziam formalmente parte dos EUA os quais incluem amplos territórios hispânicos.

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