11 de fevereiro de 2011

A América de Tocqueville (2)

I. Observar a Democracia Americana em apenas 9 meses



Na sua análise à democracia, enquanto sistema de governação política, é fundamental entender a tensão entre dois princípios liberais – Liberdade e Igualdade (formais) – tendo o primeiro sido cunhado pelo ideário iluminista do século XVII e o segundo, além de semelhante genealogia, foi parido pela Revolução Francesa numa altura em que era particularmente evidente a desproporção de condições materiais entre monarca e súbditos. Segundo o autor, ambos os princípios são próprios das democracias – todos os cidadãos são livres porque são iguais – contudo, a igualdade gera nos homens uma paixão de tal forma arrebatadora que os leva, se for caso disso, a prescindir da liberdade em nome da igualdade. Nesse sentido, a liberdade e a igualdade são expressões de dois desejos desiguais, desde logo ao nível da intensidade da paixão mas também na antiguidade do «namoro»: o desejo de liberdade é mais recente que o desejo ancestral de igualdade.

A centralidade desta questão no pensamento de Tocqueville condu-lo a uma reflexão com uma actualidade impressionante: os riscos da tirania a que a própria democracia não está imune, potenciados pela letargia dos cidadãos . Mas, em que consiste esta letargia? Para a compreender é necessário aprofundar as consequências imediatas de uma paixão tão cega pela igualdade, as quais se desenham através de duas linhas de raciocínio .

Em primeiro lugar, a igualdade das eras democráticas é acompanhada por uma igualitarização das condições de vida proporcionada pela robustez económica que foi imprimida pela Revolução Industrial e pelas riquezas das colónias (entre os principais impérios do século XIX). Tocqueville considera que este crescimento económico e respectiva redistribuição de recursos, bem como a ruptura que as democracias fazem com a formação social aristocrática estão na origem do individualismo: por um lado, a igualdade permite que um maior número de indivíduos aceda a bens materiais e escape ao ciclo limiar de sobrevivência. Em tese, os homens passam a ter condições para se autonomizar materialmente e prescindir da acção colectiva. Deixam de depender directamente dos outros para a satisfação das suas necessidades básicas; E, por outro lado, o esbatimento da hierarquia simbólica, formal e perene da sociedade aristocracia enfraquece os laços que uniam os homens entre si tendo como referência uma esfera de poder acima deles (a figura do «Senhor», do «Amo», ou seja, os detentores de poderes intermédios ou secundários exercidos entre o povo e o monarca).

Em suma, considerando os outros como iguais e em condições que podemos caracterizar como «abastadas» – em comparação com outras épocas – o indivíduo da era democrática não reconhece autoridade aos pares porque se auto-determina, porque também ele é capaz. Finalmente, esta ideia da igualdade aplicada à esfera individual é consubstanciada pelo primado democrático da soberania do povo, certeiramente definido pela fórmula: um homem, um voto.

Para além do individualismo cultivado pela igualdade, uma segunda linha domina o pensamento de Tocqueville, a qual decorre, inexoravelmente, da primeira. Isolado na sua esfera individual e não reconhecendo autoridade nos seus pares, o homem tem consciência, ainda assim, que múltiplas realizações são inalcançáveis individualmente e que há necessidade de instituições que zelem pelos seus mais variados interesses. A solução é dada pela concepção moderna do Estado e pela grande vantagem desta construção na relação equidistante entre os cidadãos com respeito ao centro (Estado). Ao mandatar o Estado como justo e imparcial zelador dos seus pertences, direitos e garantias, o homem é tentado a transferir parcelas da sua própria liberdade individual presumindo que todo o poder concedido ao governo pertence a si próprio uma vez que os governantes são, afinal, seus representantes. Tudo isto em nome da igualdade. O homem é, assim, governado, julgando governar.

A transferência de poder para o Estado sugerida pela ilusão apática dos cidadãos degenera então no fortalecimento desta entidade, a qual acrescenta à legitimidade moral da maioria (a força da presunção de igualdade aplicada às inteligências) e à legitimidade político-legal que a maioria lhe concede eleitoralmente, as tendências de uniformização (legislativa e cultural) e centralismo que inevitavelmente decorrem de uma organização político-administrativa com poderes concentrados.

Em traços gerais, os riscos da tirania a que se aludiu anteriormente (a tirania da maioria) consistem fundamentalmente na omnipotência de uma entidade colectiva com poder suficiente (ilimitado, nas palavras de Tocqueville) para anular a diversidade e minorias: étnicas, intelectuais, ideológicas, etc. Mas, ao contrário de outras épocas, esta unidimensionalidade omnipotente não se faz sentir de forma cruel, esmagadora: entra silenciosa, com «pés de veludo» e sem oposição. Esta ideia é superiormente retomada por Max Weber com o conceito de dominação. A dominação representa, nas palavras do alemão, a probabilidade de encontrar obediência e implica um mínimo de vontade de obedecer, implica interesse em obedecer. Por seu turno, a obediência implica uma aceitação, necessariamente voluntária, da ordem que se legitima através da legalidade, da tradição ou por qualidades individuais extraordinárias, extra-quotidianas .

No que respeita ao papel do Estado e aos perigos que representa a concentração de poderes no governo, tendo por base a omnipotência formal da maioria estritamente numérica, a legitimidade de tal dominação decorre na crença segundo a qual a legalidade, exterioridade e impessoalidade são características inalienáveis do Estado. Essa crença é a que induz a aceitação da obediência que se traduz, para Tocqueville, na forma silenciosa com que será exercido o poder ilimitado do Estado.

De acordo com o autor, a paixão pela igualdade que está na origem do individualismo e, com este, da subordinação a um poder absoluto – a maioria – só pode ser temperada pela liberdade política e pela separação e independência de poderes. Teoricamente, ambas as revoluções – americana e francesa – criaram condições semelhantes ao desenvolverem sistemas políticos compatíveis. Em que diferem então? Antes de mais, nas condições sociais e institucionais a montante das respectivas revoluções – o velho e o novo mundo – ou seja, nos particularismos que sulcam as respectivas diferenças à medida que se amplia o retrato e que emergem de dois pontos de partida distintos: l’ Ancien Régime, poder absoluto exercido por um indivíduo superior incorporado num esquema de sucessão dinástica e com uma estrutura social e institucional rígida, hierarquizada e autoritária, a qual é apenas sujeita a uma «operação de cosmética» pela revolução (reposicionamento das velhas instituições), não obstante as tremendas ondas de choque de 1789; e no caso americano, o ponto de partida de uma colónia britânica, sem estrutura fundiária, e distante dos braços do poder, na qual se edificam os alicerces de uma espécie de «segunda oportunidade».

Estes particularismos da sociedade americana são a chave que ajuda a desvendar a forma como os americanos reforçaram o ideal democrático sem sucumbir à tentação da igualdade. Por conseguinte, os particularismos da democracia americana resultam de três tipos de factores que se articulam e complementam entre si, concorrendo para a saúde de uma democracia equilibrada e preparada para absorver a tensão entre igualdade e liberdade.



1. Circunstâncias acidentais

Há um conjunto de circunstâncias acidentais que procuram explicar a natureza empreendedora e o espírito de autonomia individual dos americanos. Por um lado, a imensidão do território virgem por explorar, a inexistência de vizinhos belicosos (com excepção das bolsas de resistência indígena que só muito mais tarde se vêm a organizar), a abundância de recursos e a inexistência de uma aristocracia fundiária com quem negociar a utilização da terra, criaram oportunidades únicas e imperdíveis, apesar da hostilidade de uma terra desconhecida, estranha e inicialmente muito pouco atractiva.

Por outro lado, a condição de igualdade em que chegavam os colonos (imigrantes) não alimentava ideias de superioridade mas sim de entreajuda. E, por fim, a «qualidade» dos colonos. Tocqueville argumenta que estes primeiros colonos eram, no fundo, missionários puritanos mais interessados em difundir uma ideia do que recolher vantagens materiais, até porque, salienta, eram todos provenientes de classes desafogadas e letradas .

Estas condições, associadas à austeridade dos princípios que se confundem com teorias republicanas e democráticas, permitiu-lhes arrepiar caminho e recorrer a verdadeiros actos de soberania que incluíam formas de auto-governo com produção legislativa própria e circunscrita a cada assentamento. Com efeito, ao criarem um corpo de leis penais como reflexo disciplinado das leis morais pelas quais regiam a sua conduta, os puritanos passam a receber os novos colonos com um sistema edificado, pronto a ser reproduzido através da conformação normativa, da socialização e da respectiva interiorização de formas de ver, sentir e pensar.

2. Sistema legal e administrativo

Estas condições decorrem do arranjo institucional desenhado pelos americanos e das garantias que foram dadas aos seus cidadãos, isto é, decorrem das formas assumidas pelos poderes executivo, judicial e legislativo, e das liberdades outorgadas constitucionalmente. Esta questão põe em evidência as relações entre Estado e cidadãos.

Em primeiro lugar, a arquitectura de governo, assente numa estrutura federal, descentralizada em três níveis distintos de decisão: Estado, Condado e Comunidade Local.

No plano superior, a figura do Estado concentra efectivamente poderes legislativo e executivo com mandatos validados eleitoralmente (centralização governamental) embora os distribua por dois mecanismos de decisão: no caso do poder legislativo, o arranjo bi-camaral do Senado (câmara alta) e Câmara dos Representantes (câmara baixa); no caso do poder executivo, os poderes estão concentrados na figura do Governador. Esta separação dos poderes executivo e legislativo por vários órgãos de soberania é, na verdade, característica da maior parte das democracias contemporâneas, com as nuances federais (Brasil, Alemanha ou EUA) ou legislativas (a I República portuguesa tinha igualmente duas câmaras – Senado e Câmara dos Deputados – enquanto, por exemplo, o desenho britânico actual inclui a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns) . Em todo o caso, e esta ideia é fundamental, o estado federal americano visto por Tocqueville “governa mas não administra” .

A um nível intermédio encontra-se o Condado, primeiro centro judiciário de cada Estado, isto é, em regra ocupa-se apenas da administração da justiça (tribunal judicial e autoridade policial). Sem existência política, o Condado reflecte a vontade dos americanos em distribuir o poder executivo de modo a combater a centralização administrativa, intenção que é superiormente consagrada pela Comunidade Local.

Esta representa o expoente da descentralização administrativa da América e resulta inicialmente da forma como as primeiras comunidades de colonos se organizaram, reflectindo por sua vez as suas formas de auto-governo. Foi historicamente beneficiada pelo facto deste país ter emergido de uma condição particular em que a tutela jamais exercera um controlo integral porque não procedeu à instalação expressiva das principais instituições britânicas: o interesse do Império Britânico na América é essencialmente «extractivo» ou, se quisermos, de «recolecção», ignorando a ideia da necessidade de expansão de mercados que haveria de dominar as estratégias das principais potências europeias durante o século XIX, excepcionalmente compreendida por Hannah Arendt . Contudo, é possível que a independência da América tenha condicionado fortemente o Império Britânico, levando-o a expandir-se «apenas» por terras africanas e asiáticas.

De resto, o sistema comunal americano promove uma existência local autónoma, fundamental para a configuração de uma cidadania activa em virtude da liberdade que lhe é reconhecida, da igualdade consagrada pela soberania do povo (dividida em partes iguais) e da capacidade executiva de se ocupar das frugais e quotidianas tarefas da comunidade, com maior eficácia que o Estado. Ao dar existência política a unidades locais organizadas por assembleias comunais, os americanos sentem como sua aquela parcela de território pela qual são responsáveis, agindo individualmente em prol do bem comum, ou seja, de si próprios.

Em segundo lugar, a independência do poder judicial em relação ao poder político, com tribunais de diversas instâncias. Apesar dessa «descontaminação» que à época rompia com os séculos de concentração de poderes na figura do Rei, os magistrados são investidos de poder político, na medida em que podem fundamentar as suas decisões na própria Constituição e não apenas em leis, funcionando como uma espécie de tribunais constitucionais unicelulares. Ainda assim, Tocqueville não receia eventuais conflitos de interesses porque, defende, os juízes têm uma natureza positivamente aristocrática, querendo com isto dizer que não são corruptíveis e seguem um padrão ético insuspeito. Por outro lado, esse poder político é mitigado pela sua esfera de actuação, uma vez que só poderão “atacar as leis através de meios judiciais” e, caso as censurem, o âmbito individual de cada processo diminui a força moral de uma sentença. Esta crença radica num postulado frágil porque relaciona os valores e juízos éticos com princípios de conduta individual e profissional, esperando uma adesão geral. Tal ingenuidade é particularmente assombrosa quando afirma que “é cumprindo os estritos deveres da profissão de magistrado que ele actua como cidadão” , como se a norma moral fosse condição suficiente para garantir total adesão de juízes que, em todo o caso, eram nomeados pelos governadores estaduais. E estes, eleitos pelo povo. No entanto, é intransigente quando faz a defesa desse poder político, concluindo que “o poder concedido aos tribunais americanos para se pronunciarem sobre a inconstitucionalidade das leis constitui ainda uma das barreiras mais poderosas alguma vez erguidas contra a tirania das assembleias políticas” .

Em terceiro lugar, um complexo de liberdades e garantias consagradas constitucionalmente actua como mecanismo adicional de prevenção do despotismo, neste caso, objectivamente constituído para esse fim. As várias liberdades concedidas ao cidadão americano têm na liberdade intelectual, política, religiosa, de imprensa e de livre associação política os mais altos estandartes de uma cidadania activa. E articulam-se precisamente dentro da esfera descentralizada apresentada pela autonomia da comunidade local, ao nível da rejeição de imposições legitimadas pela centralização a que conduzem as maiorias.

Todavia, é à ilimitada liberdade de associação política que o autor dedica mais atenção. Efectivamente, é através da possibilidade de se associarem politicamente que os cidadãos conquistam a capacidade de intervir directamente na condução dos assuntos das comunidades locais, representando uma manifestação de exemplar cidadania no combate à centralização administrativa. E, com esta, um equilibrado contra-forte da centralização governamental.



3. Costumes

Os costumes do povo americano, indicadores das referências culturais dominantes, são o factor decisivo que explica a natureza liberal dos americanos. Como se disse, a influência moral e normativa dos puritanos é determinante no modo como estas comunidades evoluíram de forma autónoma em território inóspito. Por um lado, a religião funciona como elemento de contra-peso na mediação entre Estado e população, justamente porque está acima de qualquer edifício construído pelo homem, incluindo o Estado. Nesses termos, a religião é, ela própria, um garante da liberdade individual face a qualquer poder tirânico uma vez que se rege por leis próprias, intangíveis e insuperáveis por qualquer lei terrena. Por outro lado, sustenta o princípio segundo o qual o isolamento torna os homens independentes mas fracos. Por conseguinte, o hábito dos americanos se juntarem para enfrentarem colectivamente os desafios que se lhes colocam (consubstanciado pela criação de associações de todo o género, objectivos e dimensões) tem a vantagem de concretizar um incalculável número de realizações em que o governo não se mostra realmente competente. Mais, recordam ao indivíduo que vive em sociedade e depende mais dos outros do que de si próprio. A perspicácia desta anotação é posteriormente teorizada por Ferdinand Tönnies com a distinção dos elementos que caracterizam comunidade e sociedade e, evidentemente, com o contributo desenvolvido por Émile Durkheim a partir da divisão social do trabalho e das formas de solidariedade a montante e a jusante de tal processo.

Mas este destaque dado à associação da sociedade civil em múltiplos empreendimentos é reforçado pelo papel que reserva às associações em termos de mediação entre sociedade civil e Estado, outrora desempenhado pelos indivíduos poderosos das sociedades aristocráticas. Em suma, os costumes do povo americano funcionam não só como uma arma contra o individualismo mas, também, como uma reserva de liberdade e auto-determinação.

Ainda em relação aos costumes, Alexis de Tocqueville salienta também a preponderância do espírito legalista dos americanos, o papel reservado aos juristas (“gostam de uma vida ordenada”) e a instituição do júri em julgamentos, a qual terá uma grande vantagem no combate ao egoísmo individual porque prepara os seus elementos para se ocuparem de algo mais do que os seus afazeres. Estas últimas considerações são susceptíveis de causar nova perplexidade porque não são verificáveis, isto é, não há nenhum procedimento objectivo que possa confirmar tais predisposições e generalizá-las naquele tempo à população americana: apenas o testemunho de um indivíduo que está acima de suspeitas, em particular nas considerações tecidas acerca de factos históricos e arranjos institucionais. Mas algumas destas considerações suscitam uma reflexão crítica sobre a leitura que fez dos costumes e os impactos que têm na vida colectiva. Este é um ponto ao qual voltaremos.

Em síntese, os particularismos presentes na formação histórica da América bem como aqueles que decorrem de uma organização político-administrativa assente em princípios liberais, estão na origem de um país descentralizado quase por acidente, cuja arquitectura é originalmente desenhada da base para o topo, isto é, a existência política da América organiza-se do local para o condado e deste para o Estado e União . Por sua vez, a centralização governamental é refreada pela descentralização administrativa cujo grande motor radica, grosso modo, nas múltiplas liberdades e espírito empreendedor dos americanos. Assim, os americanos moderam os riscos da tirania pela existência de instituições descentralizadas e pela mobilização de uma cidadania activa.

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