15 de agosto de 2013

De mãos lavadas, a propósito da lei de limitação de mandatos




Em 2005, o Parlamento aprovou uma lei de limitação de mandatos em órgãos autárquicos, fundamentando esta cláusula barreira no artigo 118º da Constituição.

Até àquela data, nunca se colocou a hipótese de accionar tal mecanismo. Contudo, a mediatização de alguns casos de autarcas suspeitos, acusados, condenados e ilibados em crimes de peculato, corrupção, abuso de poder e outros, suscitou uma súbita, legítima mas reactiva indignação social no país. Um país, de resto, algo conformado no seu íntimo com os esquemas, as cunhas, a pequena evasão fiscal, o amiguismo e o xicoespertismo. Mas impreparado para lidar com a reificação de certo tipo de maus hábitos, particularmente quando a vilanagem se confunde com a mitologia política, arrasando a credibilidade do regime nos seus alicerces.

Nomes como Avelino Ferreira Torres, Fátima Felgueiras, Edite Estrela, Isaltino Morais ou Valentim Loureiro – justa ou injustamente – ficarão para sempre imortalizados por este repentino bruaá que subiu as escadas do Palácio de S. Bento confrontando os parlamentares, de calças na mão. Em todo o caso, figuras menores da democracia portuguesa por razão de maioria uma vez que a negociata, o favor e o clientelismo não são certamente aspetos exclusivos do poder local nem é neste patamar do Estado que reside a derradeira e determinante podridão.

Pelo contrário, foram os próprios agentes políticos, juízes em causa própria, quem reforçou sempre o tabu em relação a esta matéria. Importa sublinhar que só muito tardiamente foram dadas condições sérias no combate e prevenção da corrupção, não sendo despiciendo exemplificar com a lendária lamúria das equipas de investigação do crime económico (há menos de 15 anos havia um pequeno gabinete na PJ e dois ou três inspectores para investigação dos designados crimes de colarinho branco) e de alguns procuradores destemidos ou, a outro nível, a sonegação de esforços como os do eng.º João Cravinho quando viu a sua própria bancada parlamentar – maioritária – inviabilizar um projecto de lei de combate à corrupção.

Numa clara movimentação político-partidária de cerrar fileiras em torno do seu status quo, da defesa da castidade democrática e à boleia do novo circunstancialismo mediático, o Parlamento aprovou uma lei que, na primeira prova de fogo, está a gerar uma polémica tão infantil quanto absurda, à custa de uma simples preposição, cuja troca foi dada como certa pela Presidência da República no início de 2013.

Volvidos oito anos e indisponível para clarificar seja o que for, quer do ponto de vista democrático quer do ponto de vista daquilo que poderia ter sido o espírito da lei na altura em que foi mal parida, os insignes deputados desta república sacodem a água do capote para os tribunais, contribuindo inelutavelmente para um dos episódios mais infelizes da curta e imberbe democracia portuguesa, tão necessitada de maturidade…

Por conseguinte, esta lei da limitação dos mandatos representa um dos mais tristes retratos da política em Portugal, permitindo identificar sem dificuldade alguns dos traços mais distintivos da estereotipada «classe política», independentemente das coortes geracionais:

1.      Desresponsabilização dos deputados que viram a publicação da norma envolta pela indeterminação de um lapso gramatical, agravando a negligência [na conceção ou na publicação] pela indisponibilidade em clarificar o intento em sede própria – Assembleia da República – uma matéria com a qual, provavelmente, a grande maioria nem sequer concorda. E a irresponsabilidade adquire contornos particularmente disfuncionais ao ser delegada nos tribunais a necessidade de clarificação, em pleno pré-campanha eleitoral. Daqui lavam as mãos, como Pilatos.
2.      Desprezo pela democracia, nomeadamente pelo exercício do direito fundamental de eleger e de ser eleito e pelas escolhas dos eleitores. Incluir este tipo de cláusulas barreira (seja na lei seja na Constituição) resulta na menorização da capacidade dos eleitores exercerem parte da cidadania ativa que se lhes exige. Mais, em órgãos colegiais, onde as decisões são decididas por maioria, esta lei, a ser observada integralmente, corre o risco de revelar tão supérflua quanto a quimérica meta de atravessar o Atlântico com um petroleiro a remos…
3.      Sobranceria, expressa pela desconsideração das entidades a quem compete a investigação criminal e a fiscalização dos executivos políticos, nomeadamente as polícias, tribunais e assembleias municipais. Sem prejuízo para a prevenção e pela incomensurável eficiência em comparação com a reparação, a existência de indícios de crimes têm que ser apreciados por quem de direito – polícias, tribunais judiciais, tribunal de contas e outros – em respeito e observância pelo princípio da separação de poderes.
4.      Hipocrisia fértil dos partidos, primeiros responsáveis da descredibilização da política à qual se procuram escusar com este tipo de embustes. Enquanto agentes privilegiados, os partidos políticos têm a responsabilidade inaugural na credibilização da vida política e da democracia. Assim, em vez de adotarem boas práticas de governação e de renovação das suas elites, cedem como Ícaro à aventura eleitoralista, viabilizando candidaturas de políticos sem condições morais e éticas para servirem o povo. Por um lado, transferindo a sua responsabilidade na definição de listas a cargos políticos para uma lei feita à medida dos pasquins da comunicação social e de um outro carnívoro oportunista à espera dos despojos deixados para trás pelo leão. Por outro lado, explorando o tema da corrupção de forma demagógica, utilizando-o como arma de arremesso para a expressão da proverbial imundície política.
5.      A pulverização de valores e princípios como forma aceite e encorajada de combate político honrado que é feita com a redução do Todo à parte ou, neste caso em particular, a redução vertiginosa do cargo à personalidade. Por outras palavras, o emprego da perigosa generalização, infelizmente também dos tempos de hoje, que é expressa pela dedução lógica: «és presidente de um órgão há mais de 12 anos, logo, és criminoso». Independentemente do carácter territorial ou personalizado que tenha imbuído o espírito desta (a)trapalhada lei, há um princípio básico da justiça que não pode ser ignorado: a presunção de inocência até prova em contrário. Por essa razão, o espírito desta lei é o mesmo da caça às bruxas, nada importado com o conteúdo, aqui sacrificado inteiramente à forma. A questão põe-se de igual modo se atentarmos ao argumento legítimo da recusa de cargos vitalícios: não há presidentes de câmara ou de freguesia com cargos vitalícios enquanto se submeterem ao sufrágio universal de quatro em quatro anos. Do mais elementar projecto de inteligência. A este respeito, o mais absurdo paradoxo coloca-se nas situações em que um executivo idóneo, eficiente e desejado pela população se vê impedido de participar na  competição pelos votos em detrimento de alternativas inexperientes, arrivistas e aventureiras, suscetíveis de se assenhorear do poder e abocanhar o bolo logo no primeiro mandato… Ou de o ir abocanhando na sombra dos testas de ferro, aparentemente tolerados pelos furiosos porta-estandartes da toleima.

Tal como no quotidiano, uma prática indesejada pelo alter-ego, ainda que generalizada nas formas de pensar, sentir e agir, não se altera por decreto. E, neste campo, seja a credibilização da política seja o princípio da renovação dos representantes e demais agentes políticos – princípios pelos quais pugno – incumbem primeiramente aos principais atores da democracia quer do lado da oferta, partidos e movimentos de cidadãos, quer do lado da procura, os cidadãos. E é precisamente este último conjunto de actores que alguns não querem ver na equação, envenenando com populismos os mais susceptíveis, os mais indignados, os mais apaixonados.

Não são precisos quatro mandatos para se abusar do poder e fazer reverter em benefício próprio todas as benesses que «caem ao colo» de um eleito. Nem é preciso ser-se figura de proa para mexer na podridão que germina, essa sim, nas sombras. Além disso, se a questão remete para a eleição para o mesmo cargo político, tout court, devemos ser corteses com a inteligência reconhecendo que ser presidente de uma autarquia em Santa Comba Dão não é seguramente o mesmo que ser presidente na Amadora. Nem os eleitores são os mesmos. E parece haver consenso entre os politólogos sobre o carácter particularmente personalizado das eleições autárquicas.

Com esta lei pouco democrática, andam os súbitos defensores dos bons costumes a desferir jactos de areia para os olhos dos cidadãos a coberto de um virtuosismo férreo, em alguns casos tão duvidoso quanto os passeios da mulher de César na companhia de Bruto.

1 comentário:

José Eliseu Pinto disse...

Ao prevenir a eternização de um eleito no desempenho de um cargo – qualquer cargo – a ética republicana institui um postulado que afirma o primado do desinteresse particular sobre as consequências substantivas do exercício dos mandatos.
Para lograr tal resultado é forçoso acautelar os efeitos e uma prolongada exposição ao Poder, cujos efeitos estão longe de se confinar aos fenómenos extremos da prepotência, da arbitrariedade e da corrupção. E nesta sede daremos de barato a leitura maniqueísta apontada através da prosaica ironia «és presidente de um órgão há mais de 12 anos, logo, és criminoso».
De facto, sem sair do domínio da estrita legalidade, ser-nos-á muito fácil encontrar uma folgada paleta de comportamentos reprováveis, a maior parte dos quais imediatamente atribuíveis à mestria da praxis, ao “calo” da experiência e a outras congéneres que tais.
Neste sentido, todos sabemos que ser presidente de uma autarquia em Santa Comba Dão é seguramente o mesmo que ser presidente na Amadora.
Não há delicadeza estilística que consiga dissimular a substância das coisas.