Em 2005, o
Parlamento aprovou uma lei de limitação de mandatos em órgãos autárquicos, fundamentando
esta cláusula barreira no artigo 118º
da Constituição.
Até àquela data,
nunca se colocou a hipótese de accionar tal mecanismo. Contudo, a mediatização
de alguns casos de autarcas suspeitos, acusados, condenados e ilibados em
crimes de peculato, corrupção, abuso de poder e outros, suscitou uma súbita,
legítima mas reactiva indignação social no país. Um país, de resto, algo conformado
no seu íntimo com os esquemas, as cunhas,
a pequena evasão fiscal, o amiguismo e o xicoespertismo.
Mas impreparado para lidar com a reificação de certo tipo de maus hábitos,
particularmente quando a vilanagem se confunde com a mitologia política,
arrasando a credibilidade do regime nos seus alicerces.
Nomes como
Avelino Ferreira Torres, Fátima Felgueiras, Edite Estrela, Isaltino Morais ou
Valentim Loureiro – justa ou injustamente – ficarão para sempre imortalizados
por este repentino bruaá que subiu as escadas do Palácio de S. Bento confrontando
os parlamentares, de calças na mão. Em todo o caso, figuras menores da
democracia portuguesa por razão de maioria uma vez que a negociata, o favor e o
clientelismo não são certamente aspetos exclusivos do poder local nem é neste
patamar do Estado que reside a derradeira e determinante podridão.
Pelo
contrário, foram os próprios agentes políticos, juízes em causa própria, quem
reforçou sempre o tabu em relação a esta matéria. Importa sublinhar que só muito
tardiamente foram dadas condições sérias no combate e prevenção da corrupção, não
sendo despiciendo exemplificar com a lendária lamúria das equipas de
investigação do crime económico (há menos de 15 anos havia um pequeno gabinete
na PJ e dois ou três inspectores para investigação dos designados crimes de colarinho branco) e de alguns
procuradores destemidos ou, a outro nível, a sonegação de esforços como os do
eng.º João Cravinho quando viu a sua própria bancada parlamentar – maioritária –
inviabilizar um projecto de lei de combate à corrupção.
Numa clara
movimentação político-partidária de cerrar fileiras em torno do seu status quo, da defesa da castidade
democrática e à boleia do novo circunstancialismo mediático, o Parlamento
aprovou uma lei que, na primeira prova de fogo, está a gerar uma polémica tão
infantil quanto absurda, à custa de uma simples preposição, cuja
troca foi dada como certa pela Presidência da República no início de 2013.
Volvidos oito
anos e indisponível para clarificar seja o que for, quer do ponto de vista
democrático quer do ponto de vista daquilo que poderia ter sido o espírito da
lei na altura em que foi mal parida, os insignes deputados desta república
sacodem a água do capote para os tribunais, contribuindo inelutavelmente para
um dos episódios mais infelizes da curta e imberbe democracia portuguesa, tão
necessitada de maturidade…
Por
conseguinte, esta lei da limitação dos mandatos representa um dos mais tristes
retratos da política em Portugal, permitindo identificar sem dificuldade alguns
dos traços mais distintivos da estereotipada «classe política»,
independentemente das coortes geracionais:
1. Desresponsabilização dos deputados que viram a publicação da
norma envolta pela indeterminação de um lapso gramatical, agravando a negligência
[na conceção ou na publicação] pela indisponibilidade em clarificar o intento em
sede própria – Assembleia da República – uma matéria com a qual, provavelmente,
a grande maioria nem sequer concorda. E a irresponsabilidade adquire contornos
particularmente disfuncionais ao ser delegada nos tribunais a necessidade de
clarificação, em pleno pré-campanha eleitoral. Daqui lavam as mãos, como
Pilatos.
2. Desprezo
pela democracia,
nomeadamente pelo exercício do direito fundamental de eleger e de ser eleito e
pelas escolhas dos eleitores. Incluir este tipo de cláusulas barreira (seja na
lei seja na Constituição) resulta na menorização da capacidade dos eleitores exercerem
parte da cidadania ativa que se lhes exige. Mais, em órgãos colegiais, onde as
decisões são decididas por maioria, esta lei, a ser observada integralmente,
corre o risco de revelar tão supérflua quanto a quimérica meta de atravessar o
Atlântico com um petroleiro a remos…
3. Sobranceria, expressa pela desconsideração das entidades
a quem compete a investigação criminal e a fiscalização dos executivos
políticos, nomeadamente as polícias, tribunais e assembleias municipais. Sem
prejuízo para a prevenção e pela incomensurável eficiência em comparação com a
reparação, a existência de indícios de crimes têm que ser apreciados por quem
de direito – polícias, tribunais judiciais, tribunal de contas e outros – em
respeito e observância pelo princípio da separação de poderes.
4. Hipocrisia fértil dos partidos, primeiros responsáveis
da descredibilização da política à qual se procuram escusar com este tipo de embustes.
Enquanto agentes privilegiados, os partidos políticos têm a responsabilidade
inaugural na credibilização da vida política e da democracia. Assim, em vez de
adotarem boas práticas de governação e de renovação das suas elites, cedem como
Ícaro à aventura eleitoralista, viabilizando candidaturas de políticos sem
condições morais e éticas para servirem o povo. Por um lado, transferindo a sua
responsabilidade na definição de listas a cargos políticos para uma lei feita à
medida dos pasquins da comunicação social e de um outro carnívoro oportunista à
espera dos despojos deixados para trás pelo leão. Por outro lado, explorando o
tema da corrupção de forma demagógica, utilizando-o como arma de arremesso para
a expressão da proverbial imundície política.
5. A pulverização
de valores e princípios como forma aceite e encorajada de combate político
honrado que é feita com a redução do Todo à parte ou, neste caso em particular,
a redução vertiginosa do cargo à personalidade. Por outras palavras, o emprego
da perigosa generalização, infelizmente também dos tempos de hoje, que é
expressa pela dedução lógica: «és presidente de um órgão há mais de 12 anos,
logo, és criminoso». Independentemente do carácter territorial ou personalizado
que tenha imbuído o espírito desta (a)trapalhada lei, há um princípio básico da
justiça que não pode ser ignorado: a presunção de inocência até prova em
contrário. Por essa razão, o espírito desta lei é o mesmo da caça às bruxas,
nada importado com o conteúdo, aqui sacrificado inteiramente à forma. A questão
põe-se de igual modo se atentarmos ao argumento legítimo da recusa de cargos
vitalícios: não há presidentes de câmara ou de freguesia com cargos vitalícios
enquanto se submeterem ao sufrágio universal de quatro em quatro anos. Do mais
elementar projecto de inteligência. A este respeito, o mais absurdo paradoxo
coloca-se nas situações em que um executivo idóneo, eficiente e desejado pela
população se vê impedido de participar na competição pelos votos em detrimento de
alternativas inexperientes, arrivistas e aventureiras, suscetíveis de se
assenhorear do poder e abocanhar o bolo logo no primeiro mandato… Ou de o ir
abocanhando na sombra dos testas de ferro, aparentemente tolerados pelos
furiosos porta-estandartes da toleima.
Tal como no
quotidiano, uma prática indesejada pelo alter-ego, ainda que generalizada nas
formas de pensar, sentir e agir, não se altera por decreto. E, neste campo,
seja a credibilização da política seja o princípio da renovação dos
representantes e demais agentes políticos – princípios pelos quais pugno –
incumbem primeiramente aos principais atores da democracia quer do lado da
oferta, partidos e movimentos de cidadãos, quer do lado da procura, os
cidadãos. E é precisamente este último conjunto de actores que alguns não
querem ver na equação, envenenando com populismos os mais susceptíveis, os mais
indignados, os mais apaixonados.
Não são
precisos quatro mandatos para se abusar do poder e fazer reverter em benefício
próprio todas as benesses que «caem ao colo» de um eleito. Nem é preciso ser-se
figura de proa para mexer na podridão que germina, essa sim, nas sombras. Além
disso, se a questão remete para a eleição para o mesmo cargo político, tout court, devemos ser corteses com a
inteligência reconhecendo que ser presidente de uma autarquia em Santa Comba
Dão não é seguramente o mesmo que ser presidente na Amadora. Nem os eleitores
são os mesmos. E parece haver consenso entre os politólogos sobre o carácter
particularmente personalizado das eleições autárquicas.
Com esta lei
pouco democrática, andam os súbitos defensores dos bons costumes a desferir jactos
de areia para os olhos dos cidadãos a coberto de um virtuosismo férreo, em
alguns casos tão duvidoso quanto os passeios da mulher de César na companhia de
Bruto.
1 comentário:
Ao prevenir a eternização de um eleito no desempenho de um cargo – qualquer cargo – a ética republicana institui um postulado que afirma o primado do desinteresse particular sobre as consequências substantivas do exercício dos mandatos.
Para lograr tal resultado é forçoso acautelar os efeitos e uma prolongada exposição ao Poder, cujos efeitos estão longe de se confinar aos fenómenos extremos da prepotência, da arbitrariedade e da corrupção. E nesta sede daremos de barato a leitura maniqueísta apontada através da prosaica ironia «és presidente de um órgão há mais de 12 anos, logo, és criminoso».
De facto, sem sair do domínio da estrita legalidade, ser-nos-á muito fácil encontrar uma folgada paleta de comportamentos reprováveis, a maior parte dos quais imediatamente atribuíveis à mestria da praxis, ao “calo” da experiência e a outras congéneres que tais.
Neste sentido, todos sabemos que ser presidente de uma autarquia em Santa Comba Dão é seguramente o mesmo que ser presidente na Amadora.
Não há delicadeza estilística que consiga dissimular a substância das coisas.
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