Repugnam-me, por
princípio, todas as formas de maus tratos aos animais nas mais variadas
circunstâncias: no adestramento repressivo de instintos, no abandono de animais
domésticos, em determinada produção industrial com fins alimentares, nas
modificações genéticas com fins duvidosos e tantos outros exemplos. O
conhecimento genérico que possuo sobre práticas insanas, nalguns casos
hediondas, confronta-me consequentemente com o conhecimento um pouco mais
aprofundado que tenho sobre o sofrimento que certos homens e mulheres deste
mundo infligem aos seus próprios filhos. Se, na maior parte desses casos o
recrudescimento das más condições de vida – desemprego, pobreza – são fatores
de risco incontornáveis que as sociedades reproduzem, em outros casos estamos
evidentemente a falar de patologias mas, também, de práticas culturalmente
internalizadas que variam na dimensão espácio-temporal. Em síntese, por mais
objetivos e universais que sejam os direitos consagrados, é prudente estimar a
sua efetiva aplicabilidade num determinado lugar e em determinado momento.
Não querendo de modo
nenhum tecer comparações simplistas e, sobretudo, injustificar certas causas
com o que está por cumprir em outras, importa ainda assim refletir sobre que
«ontologia» é esta que coloca os direitos de animais e humanos no mesmo patamar
mas que não se desliga de um posicionamento tipicamente tutelar em que a
relação com os animais é, em muitos casos, definida pela sua propriedade e
comercialização.
No caso dos circos com
animais, repugna-me pensar que o circo A ou o circo B recorra a técnicas cruéis
para adestrar um ou mais animais ou os mantém em condições de vida intoleráveis
para o padrão da época. Sucede porém que, não acompanhando o quotidiano de
todos os circos com animais que deambulam há séculos por esse país fora, é-me
vedado o acesso a uma parte da realidade. Este desconhecimento leva-me à
seguinte interrogação: é certo e seguro que todos os circos desenvolvam
técnicas de adestramento reprováveis e sirvam de igual modo os propósitos do
número em que intervém um tigre e um caniche? Estou convencido que o princípio
da prudência aconselha a evitar a falácia da generalização ao meter duas
dimensões – os circos e os maus tratos – no mesmo saco.
Não obstante a
insatisfação expressa publicamente pelos circos tradicionais relativamente às
regras em vigor, recordamos que o Decreto-lei n.º 211/2009 e Portaria n.º
1226/2009 – saudados na altura por entidades como o PAN, Associação Animal e
Liga Portuguesa para os Direitos do Animal – representam um importante passo
para fazer cumprir e aplicar a Convenção CITES (Convenção sobre o Comércio
Internacional das Espécies de Fauna e Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção) e,
a prazo, anunciam o fim da utilização de diversas espécies de animais quer pela
identificação das espécies não permitidas quer pela proibição da sua reprodução
por entidades como os circos.
Poder-se-ia tratar de uma
lei estruturalmente injusta que desrespeitasse os direitos dos animais e não
considerasse o lastro cultural ou as consequências materiais que resultariam
para os circos, para os profissionais e para os próprios animais se estes
fossem retirados aos primeiros. Seria certamente irresponsável se não definisse
critérios de fiscalização e não identificasse os responsáveis pela
implementação de fiscalização no terreno que, devemos sublinhar, não pode de
modo algum ser confundida com a difusão lobista de vídeos deliberadamente
chocantes nas redes sociais. Mas não, o suporte legal existente não é só justo
como possibilita uma transição gradual cujos efeitos estão a ser complementados
pela própria dinâmica da procura crescente de espetáculos de natureza circense
sem animais, o designado novo circo que, infelizmente, não tem merecido os
apoios públicos que deveria ter enquanto atividade de criação artística.
Por outro lado, subsistem
as dúvidas sobre a legitimidade de uma autarquia local vedar o licenciamento a
uma atividade cuja regulamentação está fora da órbita das competências
municipais. Mas percebe-se que o esclarecimento dessas dúvidas não seja
central para os peticionários ou para quem quer retirar vantagens
políticas deste assunto, não importando qual a intensidade da demagogia e,
nalguns casos, hipocrisia.
Na minha opinião, estamos
a discutir uma matéria que em rigor teria que abranger um conjunto alargado de
atividades e práticas porque não vivemos numa ilha e porque não há animais
apenas nos circos. Ou seja, se o que está em causa é o bem-estar animal, então
deveríamos estar a discutir as más práticas na generalidade, aconteçam elas num
circo, numa arena ou na privacidade do lar. O que esta
recomendação apresentada pelo PS à Assembleia Municipal de Évora vem
fazer é tratar o universalismo com o particularismo, sem ter a noção de
que seguir-se-ão as touradas que muitos dos seus autarcas, militantes e
simpatizantes glorificam e frequentam. Não foi há cerca de 1 mês que S.
Manços viu erguido um monumento aos forcados pela respetiva Junta de
Freguesia?
Esta é uma discussão que
cabe à Assembleia da República porque este é o órgão competente para
alterar aquilo que houver a alterar na legislação em vigor - e nisso terá
o meu apoio - em defesa de uma sociedade saudável e responsável.
Para já, há
que saudar os responsáveis da iniciativa por colocarem este assunto na
agenda política, por denunciarem as condições deploráveis a que certos animais
são sujeitos. Mas esperando sobretudo que a lei em vigor seja observada e
que as entidades fiscalizadoras disponham dos instrumentos necessários para a
fazer cumprir exemplarmente. Tudo o resto se esfumará previsivelmente com uma
qualquer providência cautelar interposta por algum circo que, evidentemente tem
pouco interesse em viajar com todo o aparato para o Funchal, cidade que decidiu
banir os circos com animais.
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