3 de julho de 2015

Circos sem animais em Évora





Repugnam-me, por princípio, todas as formas de maus tratos aos animais nas mais variadas circunstâncias: no adestramento repressivo de instintos, no abandono de animais domésticos, em determinada produção industrial com fins alimentares, nas modificações genéticas com fins duvidosos e tantos outros exemplos. O conhecimento genérico que possuo sobre práticas insanas, nalguns casos hediondas, confronta-me consequentemente com o conhecimento um pouco mais aprofundado que tenho sobre o sofrimento que certos homens e mulheres deste mundo infligem aos seus próprios filhos. Se, na maior parte desses casos o recrudescimento das más condições de vida – desemprego, pobreza – são fatores de risco incontornáveis que as sociedades reproduzem, em outros casos estamos evidentemente a falar de patologias mas, também, de práticas culturalmente internalizadas que variam na dimensão espácio-temporal. Em síntese, por mais objetivos e universais que sejam os direitos consagrados, é prudente estimar a sua efetiva aplicabilidade num determinado lugar e em determinado momento.


Não querendo de modo nenhum tecer comparações simplistas e, sobretudo, injustificar certas causas com o que está por cumprir em outras, importa ainda assim refletir sobre que «ontologia» é esta que coloca os direitos de animais e humanos no mesmo patamar mas que não se desliga de um posicionamento tipicamente tutelar em que a relação com os animais é, em muitos casos, definida pela sua propriedade e comercialização. 

No caso dos circos com animais, repugna-me pensar que o circo A ou o circo B recorra a técnicas cruéis para adestrar um ou mais animais ou os mantém em condições de vida intoleráveis para o padrão da época. Sucede porém que, não acompanhando o quotidiano de todos os circos com animais que deambulam há séculos por esse país fora, é-me vedado o acesso a uma parte da realidade. Este desconhecimento leva-me à seguinte interrogação: é certo e seguro que todos os circos desenvolvam técnicas de adestramento reprováveis e sirvam de igual modo os propósitos do número em que intervém um tigre e um caniche? Estou convencido que o princípio da prudência aconselha a evitar a falácia da generalização ao meter duas dimensões – os circos e os maus tratos – no mesmo saco.

Não obstante a insatisfação expressa publicamente pelos circos tradicionais relativamente às regras em vigor, recordamos que o Decreto-lei n.º 211/2009 e Portaria n.º 1226/2009 – saudados na altura por entidades como o PAN, Associação Animal e Liga Portuguesa para os Direitos do Animal – representam um importante passo para fazer cumprir e aplicar a Convenção CITES (Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies de Fauna e Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção) e, a prazo, anunciam o fim da utilização de diversas espécies de animais quer pela identificação das espécies não permitidas quer pela proibição da sua reprodução por entidades como os circos.

Poder-se-ia tratar de uma lei estruturalmente injusta que desrespeitasse os direitos dos animais e não considerasse o lastro cultural ou as consequências materiais que resultariam para os circos, para os profissionais e para os próprios animais se estes fossem retirados aos primeiros. Seria certamente irresponsável se não definisse critérios de fiscalização e não identificasse os responsáveis pela implementação de fiscalização no terreno que, devemos sublinhar, não pode de modo algum ser confundida com a difusão lobista de vídeos deliberadamente chocantes nas redes sociais. Mas não, o suporte legal existente não é só justo como possibilita uma transição gradual cujos efeitos estão a ser complementados pela própria dinâmica da procura crescente de espetáculos de natureza circense sem animais, o designado novo circo que, infelizmente, não tem merecido os apoios públicos que deveria ter enquanto atividade de criação artística.

Por outro lado, subsistem as dúvidas sobre a legitimidade de uma autarquia local vedar o licenciamento a uma atividade cuja regulamentação está fora da órbita das competências municipais. Mas percebe-se que o esclarecimento dessas dúvidas não seja central para os peticionários ou para quem quer retirar vantagens políticas deste assunto, não importando qual a intensidade da demagogia e, nalguns casos, hipocrisia.

Na minha opinião, estamos a discutir uma matéria que em rigor teria que abranger um conjunto alargado de atividades e práticas porque não vivemos numa ilha e porque não há animais apenas nos circos. Ou seja, se o que está em causa é o bem-estar animal, então deveríamos estar a discutir as más práticas na generalidade, aconteçam elas num circo, numa arena ou na privacidade do lar. O que esta recomendação apresentada pelo PS à Assembleia Municipal de Évora vem fazer é tratar o universalismo com o particularismo, sem ter a noção de que seguir-se-ão as touradas que muitos dos seus autarcas, militantes e simpatizantes glorificam e frequentam. Não foi há cerca de 1 mês que S. Manços viu erguido um monumento aos forcados pela respetiva Junta de Freguesia? 

Esta é uma discussão que cabe à Assembleia da República porque este é o órgão competente para alterar aquilo que houver a alterar na legislação em vigor - e nisso terá o meu apoio - em defesa de uma sociedade saudável e responsável.

Para já, há que saudar os responsáveis da iniciativa por colocarem este assunto na agenda política, por denunciarem as condições deploráveis a que certos animais são sujeitos. Mas esperando sobretudo que a lei em vigor seja observada e que as entidades fiscalizadoras disponham dos instrumentos necessários para a fazer cumprir exemplarmente. Tudo o resto se esfumará previsivelmente com uma qualquer providência cautelar interposta por algum circo que, evidentemente tem pouco interesse em viajar com todo o aparato para o Funchal, cidade que decidiu banir os circos com animais.

 

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