20 de fevereiro de 2006

à tout propos (190)

O Sábado de manhã revelou-se uma fraude. Bem sei que o facto de o sol não ter arregaçado as mangas não seria impeditivo. Mas a chuva e a forte ventania intimavam decididamente a quem se aventurasse, levando à interiorização de Tánatos. Era justamente o contrário que se pretendia, a apologia da vida, Eros. Mas Zeus não esteve connosco e brindou-nos com um dia feio e desinteressante.

7 comentários:

Anónimo disse...

Caro ARV:
Vem a propósito enviar-lhe umas observações que acompanhava o meu texto "Porque hoje é sábado" e que achei inoportuno juntá-lo no blog "Mais Évora", porque ficava desenquadrado do momento.
O Vinicius de Morais é um poeta que sempre me seduziu, desde "A Bomba Atómica" e "O Operário em Construção", tendo procurado a sua obra anterior e posterior. Contudo, aqui vai o "complemento" :
"Apesar da sua genialidade poética e que ganhou maior universalidade após a 2.ª Guerra Mundial, aderindo então a legítimas e inadiáveis posições políticas antifascistas (apesar do oportunismo de algumas delas, como décadas depois se veio historicamente a constatar), sinto que Vinicius perdeu profundidade na cosmovisão (de Kosmos e não de Cosmos) que patenteava na sua juventude – referindo-me ao seu primeiro livro de poemas O Caminho para a Distância (1933) e a Forma e Exegese (1935).
A sua brilhante ironia/sarcasmo sobre o “6.º Dia da Criação” (inspirando-se numa alegoria bíblica mítica e, por isso, espiritualmente retrógrada, assim como outro mito posterior, igualmente retrógrado, sobre Jesus de Nazaré), inserida no livro O Encontro do Quotidiano (1946), até parece partir de quem já decidiu “atirar a toalha ao chão” (talvez por desilusão, pessimismo ou mesmo desistência, apesar da linguagem ser directa e contundente).
Dando um exemplo propositadamente simples e comezinho, diria que perante o cenário desolador dos mortos e dos estropiados em acidentes de viação, não obstante alguma utilidade prazenteira paralela que se lhe reconhece no seu uso, se deveria assacar as culpas ao “inventor” do automóvel (instrumento que nem sequer foi “apetrechado”, nomeadamente, de consciência e de livre arbítrio), em vez de se pugnar por melhores estradas, por carros mais seguros, por maior prudência dos condutores, etc., dada a evidente criatividade do invento (e é “isso” que procuro significar no meu texto).
Em “Purificação”, por exemplo, o poeta diz na última estrofe: “A minha voz subiu até ti, Senhor/E tu me deste a paz. Eu te peço, Senhor/Guarda meu coração no teu coração/que ele é puro e simples. Guarda a minha alma na tua alma/Que ela é bela, Senhor. Guarda o meu espírito no teu espírito/Porque ele é a minha luz/E porque só a ti ele exalta e ama.”.
Uma visão mística impecável (apesar de ser intelectualizada e não experimentada, e por isso comprovadamente reversível...)".
Decidi enviar-lhe isto porque o Telmo Rocha ensinou-me, depois do almoço, a ultrapassar a minha incapacidade tecnológica para poder comentar no seu blog - e estou no intervalo do cafézinho, além de pretender abstrair-me da morte da irmã mais nova de minha mãe, a sua única companhia em Setúbal, que será amanhã cremada.
Um abraço.

ARV disse...

Esse desencantamento do mundo possivelmente experimentado por Vinicius, parece ir de encontro àquela racionalização que sustentava esse avanço «natural» (ou retrocesso) nalgumas teses de Weber: o desencantamento.

O subjectivo e sensível Vinicius da juventude teria dado lugar ao racional e frio Vinicius, perdendo progressivamente «profundidade na cosmovisão»?

O mundo tolheu-lhe a sensibilidade?

Em todo o caso, não se trataria de um profundo pessimismo que se instalou entre muitos intelectuais durante o período da guerra fria? Casos de Marcuse, Foucault, Sartre e até antes, de Camus. Aliás, antes ainda, com as distopias de que será expoente máximo o célebre 1984. Era quase como se fosse moda. Agora não é menos, por certo... Com o século XX instalou-se a apreensão, verificou-se inequivocamente qual a dimensão do potencial destrutivo criado pelo demiurgo humano: a 1ª Guerra Mundial, a Guerra Civil de Espanha, Aushwitz, Hiroshima, etc.

Como se poderá crer na bondade natural de seres que a custo [culturalmente, civilazionalmente], lá vão domando as suas próprias trevas, que lhe são tão naturais quanto a tal bondade. Nesse plano, concordo com Vinicius de Moraes, apesar da capacidade histórica de realização do ser humano ofuscar em larga medida aquilo que são as consequências da sua acção. São 200 000 anos de coexistência relativamente estável contra apenas 200 de acelerada destruição... Não era qualquer um que o conseguiria...

Ainda assim, como seria o mundo sem essa dose de imperfeição debatida no poema, substracto inequívoco do desenvolvimento social, civilizacional e humano?

ARV disse...

Um abraço!

Anónimo disse...

O ARV é um inteligente desafiador. Quando chegar à minha provecta idade…

1) Decerto, reparou que não fiz (absurdos) juízos definitivos: somente referi “sinto que…” e “até parece…”, querendo realçar dois factos meramente subjectivos – um sentimento pessoal e uma interpretação pessoal, sempre questionáveis. Admito que fui mais peremptório quando afirmei que o Autor de “Purificação” não a experimentara, apenas a intelectualizara: porque não conheço nenhum exemplo onde se tenha verificado uma regressão do consciente pós-racional (que, no processo evolutivo, integra plenamente o racional e o transcende) para o “simplesmente” racional (pois do racional se pode regredir intermitentemente para o pré-racional, e vemos exemplos disso no nosso quotidiano). Aquele estágio superior pode, de certo modo, ficar estancado (porque é um nível de “recordação” de grande impacto estrutural, podendo não evoluir para outras “recordações” mais abrangentes), mas é um patamar que já não parece permitir um tal “trambolhão” regressivo e algo instável.

2) Concordo com o diagnóstico de apreensão que se instalou no século XX (veremos o que nos trás o XXI): tenho, há muitos anos, uma genuína e esforçada vontade em entender o período histórico que vai de 1914 (em especial desde 1917) a 1945, sendo uma parte significativa da minha colecção de livros exemplo disso (os mais próximos até dizem que tenho um interesse assaz obsessivo, em especial pelo incrível drama vizinho das duas Espanhas). Por tudo isto, “concluí” que as suas motivações só podem residir no interior do Homem – isto é, no drama dual da essência (“esquecida”) versus carapaça da personalidade (uma falsa estrutura de substituição para tentar tapar o buraco desse “esquecimento”). É esta “metadona do espírito” (saiu-me esta e gostei), esta máxima distopia (ARV), que subjaz ao “demiurgo humano” (ARV) e que temos, mais cedo ou mais tarde, de abandonar, indagando, indagando, indagando dentro de nós (“recordando”, “libertando, “expiando”, “recapitulando”, “meditando”, “recuperando”, “libertando”, etc., conforme a narrativa que for adoptada).

PS I – Como em “post” recente foi referido Sócrates, citando-se o Bernardo Soares de FP, adoptei aqui a terminologia socrática. Sócrates, nas discussões com os seus discípulos, queria ensinar-lhes a “adquirirem” as qualidades nobres (“verdades eternas”, “qualidades essenciais”, etc., também conforme a narrativa), como a coragem, a verdade, a humildade ou o amor. Sócrates demonstrava que não podemos aprendê-las de outra pessoa, do exterior, porquanto só podemos conhecer essas qualidades recordando-as dentro de nós. Daí a sua repetida referência certeira ao Oráculo de Delfos (“conhece-te a ti mesmo”) como solução final, sem alternativa (um “insight” que está corroborado em todos os tempos e lugares).

PS II – Entendi que o ARV fez um outro desafio complementar (e ainda mais interessante), que tem a ver com o “perfeito idiota”, na medida em que só se comentou o “idiota perfeito”… Na verdade, usando a sua dicotomia, sou de opinião de que, em última instância, não podem existir “perfeitos idiotas”, apenas “idiotas perfeitos” em estágios muito diversos (em próxima oportunidade, tentarei justificar esta posição).

PS III – Ainda me espanta que o ARV me induza a publicar estes singelos “desabafos”, zelosamente privados. É a idiotice a funcionar, porque hoje é sábado (e por desconhecer o seu endereço electrónico…).

Um grande abraço.

ARV disse...

Com redobrado esforço, tento responder a desafios tão estimulantes. vareylichenko@gmail.com

Um abraço

Anónimo disse...

Com a aceleração, repeti "libertando" (pode ser "iluminando"...).

Anónimo disse...

Em serão de trabalho, aproveitei para ler com mais calma o meu último texto, tendo detectado a falta de umas esclarecedoras aspas em "trás", na frase "veremos o que nos trás o XXI", um artifício de linguagem que foi motivada pelas notícias de hoje sobre a destruição mútua de mesquitas sunitas e xiitas(se encontrassem igrejas, sinagogas e outros templos religiosos o que não lhes fariam...). Sinto-me mais apreensivo com as consequências dos conflitos deste século e aquele "trás" é uma interjeição habitualmente usada para imitar o som de uma pancada muito forte na cabeça (bem diferente de "traz" do verbo trazer). Sem este artifício, escreveria: "veremos o que nos trará o séc. XXI". Fica o esclarecimento do lapso das comas.