14 de março de 2006

Invocação



Mark Rohko, Red and Orange, 1955



A MORTA


Se de repente deixares de existir,
se de repente não viveres,
eu continuarei a viver.
Não me atrevo,
não me atrevo a escrever,
se tu morreres.
Eu continuarei a viver.
Porque onde houver um homem sem voz,
ali estará a minha voz.
Onde os negros forem espancados,
eu não posso estar morto.
Quando os meus irmãos entrarem no cárcere,
eu entrarei com eles.
Quando a vitória,
não a minha vitória,
mas a grande vitória
chegar,
ainda que esteja mudo, hei-de falar:
hei-de vê-la chegar, ainda que esteja cego.
Não, perdoa-me.
Se não estiveres viva,
se tu, querida, meu amor,
se tu morreres,
todas as folhas cairão no meu peito,
sobre a minha alma choverá noite e dia,
a neve queimará meu coração,
sentirei frio e fogo e morte e neve,
meus pés hão-de querer levar-me para onde tu descansas,
mas
continuarei vivo,
porque tu me quiseste acima de tudo
indomável,
e, amor, porque tu sabes que não sou apenas um homem,
mas todos os homens.


Neruda, Pablo (1999): Os Versos do Capitão, Porto, Campo das Letras, 105.

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