10 de setembro de 2007

Discursar para as massas

A eliminação no discurso sério e sem insinuações, de vocábulos como «talvez», a rejeição de métodos gnoseológicos como a «síntese», e a ausência de um exercício permanente de auto-reflexão alicerçada na busca da coerência, são um imperativo em qualquer comunicação política dirigida às massas.
Por essa via é garantida a bidimensionalidade mais primária – nós e os outros; o eixo do bem e o eixo do mal; os ricos e os pobres; os homens e as mulheres; os polícias e os ladrões; os explorados e os exploradores; os patrões e os trabalhadores; os fiéis e os infiéis – a opção pela exaltação de oposições binárias em que uma delas é, naturalmente, a correcta. À tese «deles», contrapomos «nós» com a antítese. E ponto final, para não dar parte fraca. Por vezes, observam-se nuances. Em particular quando há negociações envolvidas. Caso contrário, procuram-se as ideias fracturantes que definam pólos opostos, perfilados em formação militar napoleónica, numa delimitação clara: «nós aqui, vós aí»! Uma cisão bipolar do universo tido como real.

Mais ou menos prosaicamente, esta postela (seria naturalmente pretensioso chamar-lhe postulado), faz parte do «bê-a-ba» dos partidos ou de qualquer outra organização ou indivíduos que lutem pelo poder ou pela aceitação e difusão da sua doutrina. Cristo, estaria obviamente neste lote de indivíduos. Ou Guevara, Trotsky, Estaline, Hitler, Ghandi, Bush, Martin Luther King ou o gato das botas.

O discurso de Jerónimo de Sousa na rentreé política que o PCP organiza de forma impecável numa exemplar realização colectiva na Quinta da Atalaia (Festa do Avante, onde fui ontem pela primeira vez), denota claramente esta preocupação pela definição de circunscrições territoriais e ideológicas. Mas nem podia ser de outra forma porque qualquer liderança titubeante seria cilindrada pelas massas cegas e cretinas. O acto de explicar e discutir ampla e racionalmente uma realidade ou ideia, resulta em grupos pequenos de pessoas. Contrariamente, o acto de comunicar para as massas consiste frequentemente na eliminação de factores que possam obstruir a compreensão, gerar confusão, consubstanciando-se então numa tal comunicação bimodal e simplista: as massas reagem a estímulos sensoriais, são impulsivas, precipitadas e tendencialmente irracionais.

Não há outra forma de arregimentação directa das massas por meio do discurso, senão torná-lo claro, acessível, simples.

Falou-se da forma, justamente.

No conteúdo, na essência, o discurso de Jerónimo de Sousa não surpreendeu e justificam-se boa parte das críticas que desfere contra o governo de Sócrates, apesar dos tradicionais erros na leitura da contemporaneidade. Aquele, pelo contrário, escusou-se sempre a comunicar (deste o início da legislatura). Talvez tenha sido essa, a forma encontrada para se permitir o estilo ziguezagueante na governação. Sem um vínculo, uma verdadeira âncora ideológica, sem uma delimitação, o governo não arregimenta. Mas também não é cilindrado.



PS: A ASAE esteve na Festa do Avante e felizmente, em outros locais do país (para que não se alimente o conhecido síndrome da perseguição). Ao contrário do que as pessoas possam pensar, em nenhum momento dei por cheiros canabinóides. Nem ali, nem em nenhuma festa no país onde afluam hordas de jovens em busca de prazer e diversão.

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