10 de dezembro de 2007

Um murro no abastado estômago do Ocidente



A Cimeira UE-África patrocinada pela presidência portuguesa da União Europeia e que se realizou em Lisboa durante este fim-de-semana, teve alguns pontos altos, apesar do previsível fiasco. O Parque das Nações encheu-se de excêntricos, cujo exibicionismo rompeu com a habitual apatia da capital. Os hotéis atulharam-se contraditoriamente com pouca gente, facto que explicará a condescendência das autoridades relativamente ao campismo selvagem ocorrido em S. Julião da Barra.
Não obstante a cimeira ter sido eclipsada pelos luxuosos desfiles, convertendo-se num evidente fait-divers, durante este fim-de-semana fomos brindados com a sumptuosidade de inimitáveis pérolas exóticas a que certamente não estamos habituados no nosso desinteressante lufa-lufa quotidiano.

Uma das mais brilhantes pérolas, foi-nos generosamente oferecida pelo jornal Público no sábado que, à guisa de publicidade paga, nos fez chegar uma página completa com a mensagem do visionário líbio, Kadhafy.

Assente numa inovadora metodologia epistemológica, o Irmão Kadhafy sustenta inexoravelmente que “a análise intelectual é o código dos acontecimentos”, concluindo em seguida que “o perigo das armas metralhadoras contra os seres humanos baseia-se no seu uso exagerado na morte colectiva”.

Este dilecto sábio demonstra, pela sua longa experiência, estar consciente da gravidade da situação, reconhecendo com humildade os limites da utilização de armas de guerra. Mais, denunciando o exagero do seu manuseamento, o místico patriarca entroniza as virtudes de uma morte ocorrida na solidão e magnanimidade de Deus. Ímpios os que negam a privacidade na hora da morte aos que são crivados de balas a um passo de valas comuns.

Inundada por uma iconografia muito própria em que as sete imagens de Kadhafy alternam com imagens de soldados a disparar, a página do Público termina a gloriosa apresentação do site de Kadhafy na Internet com uma mensagem de esperança e de amor.
Isso mesmo é confirmado pela fotografia disposta no canto inferior esquerdo, em que um indivíduo surge serenamente montado na sua bicicleta alada, indiferente à catalítica coluna de fumo que se ergue nas suas costas.

Mas a fotografia ficaria desasada sem o apelo triunfante a rematar: “pela piedade humana há necessidade de apoiar o meu apelo para anular as armas metralhadoras exceptuando as outras armas convencionais”. Com esta frase, o bom e avisado Irmão parece postular um regresso às origens, ao corpo a corpo, à gravata colombiana e à secagem das tripas ao sol depois de um glorioso embate com calhaus, mosquetes, adagas e catanas. Um purista, portanto, saudoso dos tempos em que as guerras eram guerras e, cada tiro, um acto divino abençoado pelos céus.

Resta-nos agradecer à presidência portuguesa da União Europeia por estes momentos de memorável lazer e quebra da terrível monotonia que se abateu sobre este país. Resta-nos também a esperança que a União Europeia redobre as indemnizações aos países africanos pelos danos sofridos com o colonialismo e que passem a ser enviadas em remessas de armas convencionais, minas anti-pessoal, bombardeiros, ferraris adaptados à savana, mansões na Quinta do Lago e viagens à Europa. Para poupar no câmbio.

1 comentário:

Anónimo disse...

Achei fantástica a pose do senhor e o desfile de óculos de sol que protagonizou ... qual passerelle.
Mas esta cimeira trouxe a nu outros aspectos: há décadas não os soubemos dominar, então tentamo-los comprar, por um valor inferior ao que sozinho o Sr. Gates oferece anualmente. Em contraposição e, cientes das suas riquezas, os visitantes só aceitaram falar de igual para igual.
Enquanto toda a peça decorria em Lisboa, em Xangai aqueles senhores de olhos em bico, riam desalmadamente, por só agora despertarmos para um continente cheio de oportunidades, cuja conquista económica esses senhores silenciosamente já iniciaram.