11 de fevereiro de 2011

A América de Tocqueville (4)

Conclusão

Com uma profundidade exemplar, Da Democracia na América é uma obra cuja análise ao sistema político americano é dificilmente contestável. A forma como funcionam as instituições democráticas americanas e como se relacionam entre si ao nível do exercício de poder representa ainda hoje um passo decisivo no estudo das democracias contemporâneas. Sob esse ponto de vista, embora a prática e funcionamento institucional nem sempre reflicta o espírito demiúrgico (um bom desenho não funciona por si só), os órgãos de soberania americanos, as fronteiras ou documentos como a Constituição são realidades objectivas que existem de facto. A formação profissional de Tocqueville bem como a missão de que estava incumbido, tornariam impraticável qualquer análise formal do sistema que não fosse cabal e insuspeita.

Por outro lado, o recenseamento das condições que estiveram na origem do país e a indexação dos seus particularismos às virtudes de um sistema político substantivamente diferente do francês mas, também ele, susceptível de tropeçar nas armadilhas do apagamento cívico, representa um salto qualitativo importantíssimo e uma aproximação muito interessante à problematização sociológica que se passou a desenhar nas décadas seguintes.

Por conseguinte, há um conjunto de factores que fazem da América um país com grande sede de liberdade, os quais radicam em circunstâncias excepcionais, costumes e, necessariamente, na construção político-administrativa. Por isso, dificilmente teria sido possível que o sistema político americano tivesse sido implementado por decreto no dia 4 de Julho de 1776. Essa é a excepcionalidade mais admirável que a obra apresenta, precisamente porque põe em evidência uma dimensão cívica inaudita no século XIX. A única legitimamente plausível em democracia para aplacar os ímpetos de «pre-domínio» institucional.

Em contrapartida, a relação de causalidade entre individualismo e prosperidade económica é plausível mas talvez Tocqueville pudesse ter retirado mais proveito da exploração do tema da diferenciação social e do fenómeno urbano. Foi justamente em busca de riqueza e bem-estar que os colonos se lançaram à conquista do Oeste. E, no entanto, em circunstâncias e contextos particularmente ameaçadoras, é natural que se unissem para defender as suas possessões e as suas famílias. Além disso, importa salvaguardar a distância entre realidade e proposição teórica. A igualdade postulada teoricamente pelos regimes democráticos não tem a correspondente materialização, no sentido marxista, no plano social e, evidentemente, a América de Tocqueville não seria excepção.

Noutro sentido, o arranjo institucional relacionado com a independência e distribuição de poderes bem como a dinâmica do papel reservado às comunidades locais, funcionam como mecanismos de grande utilidade para o equilíbrio social e político de um país em crescimento, cujas preocupações passam também pelo respeito das múltiplas minorias que constitui cada assentamento, cada comunidade. É provavelmente aqui que reside a pedra basilar de todo o sistema político americano, o qual, perante uma imensidão de território para administrar e a dificuldade de chegar com a mesma eficácia a toda a parte, compreendeu perfeitamente a importância de descentralizar serviços e competências. Mas, mais do que compreender, terá inteligentemente sabido aceitar.

A sobriedade desta análise é particularmente aguçada quando o autor reconhece a importância funcional de um governo central. E quando, justamente, vê o governo central como o primeiro potencial inimigo da cidadania. À semelhança das suas paixões, divididas entre a aristocracia de nascença e a democracia por adopção, Tocqueville mostra-se resolvido a solucionar uma tensão entre dois princípios que julga oscilantes: Liberdade e Igualdade. E resolve-a combatendo o individualismo através da emancipação da comunidade e opondo a liberdade política à centralização governamental.







Referências Bibliográficas



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Marx, Karl e Friedrich Engels (1846), A Ideologia Alemã, in Manuel Braga da Cruz (2008), Teorias Sociológicas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª ed., pp. 11-60.

Norris, Pipa (2004): Turnout in Electoral Engineering, Voting Rules and Political Behaviour, Cambridge, University Press, pp. 151-176.

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Wattenberg, Martin (2002): Where Have All the Voters Gone?, Cambridge, Harvard University Press, Caps. 1, 3, 4 e 5.

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_dos_Estados_Unidos



PS: todas as notas de rodapé foram suprimidas mas quem estiver interessado no arrazoado, basta pedir e envio o pdf original.
Trabalho submetido a avaliação na disciplina de Teorias Sociológicas Clássicas do Curso Doutoral em Sociologia, ISCTE, 2011

1 comentário:

Anónimo disse...

Doutoramento?
Parabéns